Apesar de andar nestas andanças há muito tempo, e ter uma curiosidade permanente às questões culturais associadas à gastronomia, nunca me apercebi que os cozinheiros também têm um padroeiro, um orago, que se celebra a 10 de Agosto, em homenagem a São Lourenço. Segundo alguns autores São Lourenço também é considerado protector dos grelhadores, dos pasteleiros, dos estalajadeiros, dos bibliotecários, dos bombeiros, dos profissionais do vidro, e dos pobres. Um leque muito variado de profissões mas talvez os grelhadores, os cozinheiros e os pobres tenham sido os primeiros a reivindicar a seu estado de protecção e os primeiros a comemorar o seu dia.
Muito embora, com a minha postura de agnóstico, pareça não me interessar por coisas da Igreja, é me obrigatório entender a sua organização pois todas as religiões influenciaram, e determinaram, algumas regras alimentares e muitas proibições. Parece-me, portanto, uma ousadia escrever sobre um Santo ou das razões que levaram algumas profissões a escolhê-lo com protector.
São Lourenço nasceu no século III em Huesca e cedo partiu para Roma onde assumiu a função de diácono do Papa Sixto II. Naquele tempo diácono era um cargo de extrema importância, e semelhante ao que hoje desempenham os Cardeais da Cúria no Vaticano. O Papa dispunha de sete diáconos que o ajudavam a administrar a Igreja, e o mais importante, também chamado Arcediago, geria todos os bens da Igreja. Ora, São Lourenço era o Arcediago, que normalmente deveria suceder ao Papa. De entre as várias responsabilidades recebia as esmolas, conservava os arquivos, dirigia a construção de cemitérios, e dele dependiam a maioria do “clero romano, os confessores da fé, as viúvas, os órfãos e os pobres”. Devido às suas funções era já considerado como o futuro Papa. Consta que a maior provação a que foi sujeito terá acontecido durante a morte do Papa Sixto II, assassinado com quatro dos seus diáconos. Segundo a tradição, São Lourenço terá perguntado ao Papa, em agonia, para onde seguia sem o seu filho, o seu diácono. O Para terá respondido que ele não julgasse que o abandonava, e que maiores combates o esperavam e se reencontrariam passados três dias.
De facto, três dias depois do martírio do Papa, São Lourenço é chamado e apresentado perante o prefeito de Roma, Cornelius Saecularis, sendo imperador Valeriano. O prefeito ordena-lhe que entregue o dinheiro e os livros de contas da Igreja. São Lourenço pede então para voltar no dia seguinte e promete entregar-lhe toda a riqueza da Igreja. Entretanto distribui toda a riqueza pelos seus fiéis, e no dia seguinte informa o prefeito que tem todas as riquezas para lhe apresentar. Ousadamente apresenta-lhe uma multidão de crentes, pobres, doentes e protegidos da Igreja dizendo: “Estes são os verdadeiros tesouros da Igreja.”
São Lourenço terá tomado esta atitude cheio de fé e em acto caridoso para os mais necessitados. O prefeito é que não gostou e ter-lhe-á respondido: “Pagarás a fraude com a morte. Morrerás a fogo, em cima de uma grelha.”
Assim cumpria-se a vaticínio de Sixto II. São Lourenço é colocado no fogo em cima de uma grelha, sentindo-se já o cheiro da sua carne assada, vira-se para o carrasco e diz ainda: “Já está cozido deste lado, diz ele ao carrasco, dá-lhe volta e come.” E foi assim juntar-se, pelo martírio, ao seu Papa. Isto aconteceu em 258.
Esta breve descrição dos últimos tempos do São Lourenço vieram determinar a escolha de algumas profissões para seu padroeiro protector, designadamente aos da área da cozinha.
A figuração de São Lourenço é sempre acompanhada de uma grelha, símbolo do seu martírio. É curioso como encontramos algumas imagens com São Lourenço Menino, mas sempre com a grelha.
Vários pintores representaram São Lourenço quase sempre ilustrando os últimos momentos da sua vida. A pintura mais significativa será de Giovanni Lanfranco (1635) que representa a acção de amarrar São Lourenço à grelha. Por outro lado, e ao gosto da época, Bernardo Strozzi (1638) representa São Lourenço a distribuir objectos do tesouro pelos pobres. Mais ousado pela riqueza, ou ostentação, Francisco de Zurbarán (1636), num quadro de grandes dimensões, exposto no Museu do Ermitage em S. Petersburgo, apresenta São Lourenço ricamente vestido mas segurando com a mão esquerda uma grelha. A grelha é, de facto, o principal atributo iconográfico de São Lourenço.
Supõe-se que a difusão do seu culto tivesse iniciado em Aragão, sua terra natal, depois por toda a Itália e a partir do século X na Alemanha e por toda a Europa. No Brasil as comunidades italianas dedicam-lhe muito devoção e é patrono da Escola de Gastronomia da Universidade de Caxias do Sul. Em Roma, particularmente, é venerado ao mesmo nível dos primeiros Apóstolos sendo que segundo a antiga liturgia de Roma, as festividades de São Lourenço são as mais importantes depois de São Pedro e São Paulo.
Em Portugal São Lourenço é venerado em muitas localidades. Muitas freguesias têm o seu nome, e é curioso notar que também na sua iconografia consta uma grelha. É o caso de São Lourenço em Portalegre, Sande – S. Lourenço em Guimarães ou S. Lourenço de Ribapinhão entre muitas outras.
Alguns museus portugueses apresentam esculturas magníficas de representação de São Lourenço designadamente o Museu Alberto Sampaio, Museu Nacional Machado de Castro e o Museu Nacional de Arte Antiga.
São Lourenço é também um santo popular. Pela sua data dedicada, 10 de Agosto, há um provérbio que diz: “Pelo São Lourenço vai à vinha e enche o lenço”, querendo dizer que as uvas estão prontas para comer e que as vindimas virão a seguir. Ainda nunca vi a classes profissionais protegidas por este Santo, comemorar ou fazer algum festejo associado. Actualmente mesmo os não crentes participam activamente nos festejos populares que se iniciaram com festividades da Igreja. A própria Igreja parece já se ter habituado aos actos pagãos e à interactividade do Sagrado e do profano.
Queremos melhor exemplo que o Santo António e o São João?
Aprendamos a entender as tradições e as suas origens.
© Virgílio Nogueiro Gomes
Fotos cedidas pelo Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa
Aproveitem a visitar este MUSEU.