Dobrada, ou Tripas à Moda do Porto?

Reconheço que a maioria das pessoas confunde estas duas confeções culinárias. Até encontrei restaurantes que apresentam nos cardápios o termo dobrada por ser mais apelativa do que tripas!

De facto ambas confeções são um guisado de carnes onde a leguminosa é o feijão branco. Depois vem sempre o arroz como acompanhamento. Mas o que as distingue ou porque se confundem?! De forma fácil podemos dizer que Dobrada é um prato da zona norte de Portugal enquanto as Tripas são do Porto.

Geralmente para a dobrada utiliza-se apenas a parte do saco, pança. Para as tripas utilizam-se as restantes partes das miudezas que incluem os livros ou folhos, os favos e a touca, isto no que diz respeito à designação da receita. Mas há mais. A receita de tripas é sempre muito mais completa de carnes. Leva também sempre mão de vaca, chouriço de carne, orelheira, toucinho entremeado, salpicão, carne da cabeça de porco e galinha. Muitas vezes chamam-se tripas ao conjunto dos quatro elementos do estômago, touca, coalheira, folhos e pança, e ainda aos intestinos que muitas vezes não entram na confeção.

A origem da receita perde-se no tempo, ou no emaranhado da tradição oral, onde nunca devemos descurar a expressão de que “…quem conta um conto, acrescenta…”.

 

 

 

dob1

João da Matta, no seu livro Arte de Cozinha (1870) apresenta uma receita de Dobrada Guisada à Portuguesa, e no prefácio de Alberto Pimentel, faz comparações com as «Tripas à portuense», muito embora o autor João da Matta não contemple no livro a respetiva receita.

 Em o Tratado Completo de Cozinha e Copa, de Carlos Bento da Maia (1904) apresenta-nos uma receita de «Dobrada com feijão branco», terminando com a seguinte frase: “Este prato ainda se pode tornar mais complexo, juntando-lhe cenouras e nabos picados, aproximando-se assim das Tripas à moda do Porto”. Apresenta depois as «Tripas à moda do Porto», receita na qual o autor afirma que a ”…matéria-prima origem do nome entra em pequena quantidade.” Diz depois que se usa a dobrada que é mais conhecida por coagulador, e leva ainda a mão de vaca, galinha, presunto e chouriço.

A maior confusão entre dobrada e tripas pode advir do livro A Cozinha Ideal, de Manuel Ferreira (1933) e que é o primeiro manual profissional do século XX, que refere que se trata da mesma “coisa”, dobrada ou tripa. Depois, em 1936, António Maria de Oliveira Bello, em a Culinária Portuguesa, mantém a confusão chamando à receita “Dobrada ou Tripas à Moda do Porto”. Albino Forjaz de Sampaio, em Volúpia – a nona arte a Gastronomia (1940) repete “…dobrada ou tripas à moda do Porto…”.

Em livro oficial da Junta Nacional dos Produtos Pecuários, Definição Anatómica das Peças de Talho (1959) define como designação para dobrada os quatro elementos: rume, barrete, folhoso e coagulador. Admite ainda que no Porto se utiliza a designação Pança indistintamente para o rume ou barrete. O coagulador também é conhecido por Coalheira e constitui com os intestinos as Tripas.

Pela prática corrente, e nos espaços restaurativos mais rigorosos, «Dobrada» é um guisado com partes do estômago do bovino (habitualmente touca ou barrete), com presunto e chouriço e feijão branco. Trata-se de um prato mais identificado com o norte de Portugal e raramente vem associado a uma localização geográfica. «Tripas à Moda do Porto», é da mesma forma um guisado com os componentes do aparelho digestivo do bovino, ao qual se adiciona mão de vaca, galinha, toucinho, salpicão e chouriço, e o feijão branco. Sempre identificado com o Porto. Em ambas as receitas o arroz acompanha sempre.

 

 

 

 

dob2

Mas é frequente baralhar as receitas e chamaram-se das duas formas, o que não é correto. Por isso não nos parece estranho que Fernando Pessoa, de fracas manifestações gastronómicas, tenha ele, também, confundido a dobrada com as tripas e Álvaro de Campos chamar-lhes «Dobrada à moda do Porto», receita que não existe com essa designação. Álvaro de Campos queixa-se de lhe servirem a dobrada fria, e indigna-se com esse facto. Compara a dobrada com o amor que tem o seu estado certo. Ora ao servirem-lhe uma dobrada fria parecia-se (?) com um amor desencantado, uma dobrada fria seria (?) como um amor falhado.

Sobre a origem das tripas, ou porque os habitantes do Porto serem conhecidos por tripeiros vários autores já escreveram. Para este texto socorro-me do ilustre e saudoso investigador Dr Gonçalo dos Reis Torgal, de quem fui amigo, que publicou uma abordagem à receita das Tripas à moda do Porto, no livro Gastronomia Portuense, de Hélio Loureiro, que foi Grão-Mestre da Confraria das Tripas à Moda do Porto, Edições Inapa (2001). Aí refere que …serão coevas da alvorada nacional, quando se armava a frota dos Cruzados que o Bispo do Porto convencera a ajudar o Rei primeiro na conquista de Lisboa. … Fazem-nas outros cozinhar pela primeira vez na manhã das Descobertas: sobras do abastecimento da Armada do Senhor Infante, à conquista de Ceuta. Terceira versão só as põe ao lume dos famintos sitiados do Porto, em 1832.

A Confraria tem feito um esforço para defesa desta emblemática receita do Porto. Por isso, é comum chamar aos portistas também de tripeiros.

Eis parte do poema de Fernando Pessoa /Álvaro de Campos:

Um dia, num restaurante, fora do espaço e do tempo,

Serviram-me o amor como dobrada fria.

Disse delicadamente ao missionário da cozinha

Que a preferia quente,

Que a dobrada (e era à moda do Porto) nunca se come fria.

Impacientaram-se comigo.

Nunca se pode ter razão, nem num restaurante.

Não comi, não pedi outra coisa, paguei a conta,

Mas, se eu pedi amor, por que é que me trouxeram

Dobrada à moda do Porto fria?

Não é prato que se possa comer frio,

Mas trouxeram-mo frio.

Não me queixei, mas estava frio,

Nunca se pode comer frio, mas veio frio

 

Como eu entendo Álvaro de Campos! E, como eu, seguramente muitos outros que defendem este património, que é nosso.

© Virgílio Nogueiro Gomes

 

 

 

doc3

 

Dobradinha servida no Brasil