(Brisas do Liz ou de Santa Ana)
Parece fácil estabelecer a diferença, ou a definição, das categorias que genericamente nos habituaram a apelidar a doçaria de popular e de conventual. No entanto, para isso, é necessário fixar no tempo, na geografia, e nas mercadorias/produtos de cada uma delas que as vão caracterizar.
Antes de definir os dois conceitos é importante referir em que época surge a existência de ambas e, logicamente, da sua distinção. E isto deve-se a um produto fundamental que era muito caro e muitas vezes utilizado como um fármaco: o açúcar. Apesar de já os portugueses o conhecerem, e utilizarem durante a ocupação moura (os infiéis de quem herdámos tantos doces e outros prazeres) só tardiamente chega em abundância e a preço mais baixo. Depois de várias tentativas de produção de cana-de-açúcar no Algarve, e depois na Madeira, é em meados do século XVI que este produto chega em quantidade a Portugal com a exploração de cana do Brasil. Em rigor estabelece-se o primeiro engenho em 1532. É, portanto, a partir desta data que se pode estabelecer a separação dos dois tipos de doçaria, apesar de já haver uma doçaria palaciana mas muito inferior à que se desenvolveu posteriormente nos conventos femininos. A doçaria que dominava era confecionada com mel como ainda hoje podemos observar em toda a zona do Magrebe, e que consta num tratado de cozinha do século XIII, escrito por Ibn Razin Tujibi (1293) sendo um documento que nos revela a alta cozinha que se praticava no reino de El Andalous. Nas receitas doces separam bem as confecionadas com mel das confecionadas com açúcar.
Quanto à origem podemos afirmar que a doçaria popular era aquela que era confecionada em ambiente doméstico, e mesmo aquela que se produzia para festas e romarias, a partir das quais se pode fazer um legítimo inventário, também hoje quase conhecida como rural. A conventual é então uma nova doçaria, de quase exaltação, e que emana dos conventos e mosteiros, com um receituário novo, e mais rico.
Quanto aos produtos poderemos afirmar que a doçaria popular emprega em maior quantidade a farinha do que o açúcar, poucos ovos e, por vezes, frutos secos locais. Único requinte é a utilização de canela ou erva-doce. Era uma doçaria que não era exibicionista, e simples e de confeção para dias festivos, ou mercados. Muitas vezes usava-se azeite para garantir a sua conservação por mais dias. Quanto à conventual começa por usar muito açúcar, muitos ovos, farinha quase inexistente, muita amêndoa e frutas cristalizadas ou em xarope de açúcar. Muitas vezes a doçaria conventual tem como ponto de partida um ponto de açúcar tanto para fazer cremes (ovos moles), como para fazer bolos (real ou das Clarissas de Évora).
Depois destas generalidades vejamos como podemos definir a que é a doçaria conventual. Pela lógica afirmamos que é a doçaria que foi aperfeiçoada, confecionada e divulgada a partir dos conventos. O que levou a que os conventos desenvolvessem esta prática doceira? Os conventos não eram só locais para receber meninas e senhoras por razões de fé e dedicação à vida religiosa. Os conventos eram também locais, casas de recolhimentos de meninas e senhoras abastadas, que não tendo encontrado casamento à altura da sua posição social, encontravam nestas casas uma forma adequada de caminhar para a velhice. Ora, nestes casos, eram acompanhadas de bons dotes, e faziam-se acompanhar de até duas criadas. São estas criadas, já habituadas a cozinhar em ambientes sofisticados para a época, que vão desenvolver esta nova doçaria e que, com todo o tempo do mundo, a aperfeiçoam. Ora, apesar das circunstâncias que permitiam a manutenção dos produtos naqueles locais, há todavia conventos que praticavam também uma doçaria que não seria tão rica e que mais se identifica com a doçaria popular. Os produtos de elite da doçaria conventual são o açúcar, os ovos (mais gemas e menos claras) e a amêndoa. Depois ainda outros frutos e, também, frutos cristalizados.
Quando analisamos com atenção o inventário de doçaria conventual, encontramos por vezes, muitas repetições. Ora sendo as receitas um pequeno segredo de cada convento, pode parecer estranho esta repetição. Acontece que, sempre que abria um convento novo, ia habitualmente um pequeno grupo de um convento já existente, para iniciar a abertura. Possivelmente este pequeno grupo levava o receituário a que teve acesso, e que conseguiu copiar. Por essa via é que também encontramos a mesma receita com ligeiras variações dado o registo de passagem nem sempre ser escrito e, muitas vezes, apenas por transmissão oral. Um dos exemplos é o toucinho-do-céu que é executado com ligeiras alterações que vão determinar a sua designação com origem de localização. Assim temos o toucinho-do-céu de Guimarães diferente do de Murça e ainda diferente de vários do Alentejo. Mas a doçaria que se confeciona nos conventos não é só aquela a que hoje chamamos de conventual. O exemplo mais popular é a marmelada. Claro que nos conventos assistimos ao apurar de diferentes versões do mesmo doce, como é o caso da marmelada branca e da comum ou vermelha, com origem no Mosteiro de Odivelas. Ainda pelas frutas, e para aproveitar na época da sua colheita, e garantir a sua conservação, se faziam doces como a Perada, Pessegada e a muito famosa Nabada do Mosteiro de Semide. Neste capítulo uma curiosa receita de Azeitonas Doces do Convento de Nossa Senhora dos Anjos de Chaves. Outros bolos simples eram produzidos nos conventos sem que chegassem até nós com o rótulo de conventuais. Neste grupo temos o Bolo Podre do Convento do Lorvão, Bolo de São Bernardo de Arouca, Bolinhos de Banha do Mosteiro de Salcedas, Bolo de Nozes do Mosteiro de Santa Clara de Bragança, Bolo de Laranja do Mosteiro das Chagas de Lamego, ou o Bolo Escuro do Mosteiro de Santa Clara de Trancoso. Pelas designações podemos registar que uma doçaria mais simples se encontrava a norte do país. Não faltavam também nos conventos o tradicional arroz doce, ou a aletria doce.
Definir então o que é a doçaria conventual como hoje a conhecemos, devemos pensar em considerar três categorias fundamentais: a doçaria de colher, a de pequenos doces e a de bolos grandes. Na primeira vamos incluir os Ovos-moles do Convento de Nossa Senhora do Carmo de Aveiro, várias Trouxas-de-ovos do mesmo convento e também do Convento da Esperança de Vila Viçosa, ou do Convento da Conceição de Beja, Barrigas de freira de vários conventos, Charcadas de Ovos, Sopas Doces ou Douradas, Encharcadas, Fatias de Tomar, Formigos, e Manjares de Ovos. Quanto a pequenos doces a variedade é ainda maior desde as Arrufadas, passando pelos Beijos de Freira, Bolinhos de Amor, Broas, Cavacas, Celestes, Clarinhas, Cristas, Empadas Doces, Fofos, Lérias, Papos de Anjo, Queijinhos do Céu, Suspiros, Tibornas e muitos outros. Nos bolos grandes temos os variados Toucinhos-do-céu, os Bolos Reais e o famoso Bolo do Convento das Clarissas de Évora. O inventário da doçaria conventual é muito extenso. Devemos é assumir seriedade quando apelidamos um produto de conventual só porque a designação vende mais. Ter a certeza da origem será melhor ainda. Lamentavelmente em recente concurso de doçaria conventual, o júri sentiu-se obrigado a recusar dois doces porque não se enquadravam na designação conventual. Se lhe chamamos conventual que saibamos o convento de onde vem.
Apesar de serem boa companhia para um chá, ou por isso mesmo, não se esqueçam de descobrir um vinho ideal para acompanhar estas iguarias. E Portugal tão rico com generosos para conjugar!
(Castanhas Doces de Viseu)
© Virgílio Nogueiro Gomes
(Esta foto é de Adriana Freire)