Uvas, uvada e as vindimas

Esta crónica pode parecer desfasada do tempo de recolha do produto que originou o texto. Mas as uvas, devido à globalização assustadora, também se podem encontrar durante todo o ano. Já a «uvada» podemos conservar e consumir durante todo o ano.

 

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Todos esperam pela chegada das vindimas. A ansiedade pelas variações meteorológicas não retiram a importância das tarefas que se aproximam. Já muitos provaram as uvas em fim de refeição, ou, à boa moda antiga, a lanchar ou petiscar a meio da tarde umas belas uvas com um naco de pão, de preferência de farinha de mistura com centeio. Sabem melhor as uvas, e o pão!

Mas para as vindimas é sempre preciso contratar muita mão-de-obra e é quase sempre preciso dar-lhes de comer. Em minha casa, fazia-se vindima para produção de vinho para consumo doméstico. O que não impedia que as vindimas não fossem uma festa celebrada por todos, e uma alegria para a família. Começava-se com o desafio, ou contrato, para o trabalho. Certo que havia sempre um grupo de torna-jeira, cujo comportamento de resposta era um compromisso de séria execução. Logo pela manhã, para começar o dia, o mata-bicho para os homens que era diferente do das mulheres. Homens com bacalhau desfiado, tragos de aguardente, pão de centeio e tiras de presunto ou carne gorda. Para as mulheres, café de cevada, pão com queijo e marmelada ou simplesmente pão com manteiga. Para o almoço a refeição variava, mas era forte. Estranho atualmente pensar que, muitas vezes com tanto calor, se comiam alimentos ou preparações fortes. Desde a feijoada com todos, ao prato que mais me recordo que eram umas batatas guisadas com bacalhau onde não faltavam pimentos e feijão-verde, e que ainda gosto que me surje este prato. Depois havia sempre pão em abundância e algum presunto, fruta pouca, mas bolos secos apareciam desde os Económicos aos Dormidos e para os mais finos, algumas Súplicas. O dia não tinha horas, tinha tarefas para acabar. E, assim, se não estava terminada lá se improvisava um segundo lanche com o que havia por casa, muitas vezes os enchidos que ainda sobejavam da matança do ano anterior. E queijo.

 

 

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Claro que estou a escrever sobre as vindimas pequenas, de pequenas produções onde todos se conheciam. Mas estávamos todos tão próximos, e orgulhosos, das grandes vindimas do Douro! Aquilo sim, eram tarefas que exigiam grande planeamento, e fartura. E vinha muita gente de fora para garantir de que as uvas seriam todas colhidas no tempo oportuno. Esta tradição vem de séculos passados, e muitos viriam da vizinha Galiza. Consta que seria por exigência deles que se começaram a transportar, em barricas de madeira, sardinhas com sal que depois cada um confecionaria, e daí se ter criado a expressão “puxar a brasa à sua sardinha”. E que boa é a tradição… como o prazer de acompanhar a refeição com vinho. Vinho que não serve para matar a sede, mas para que a comida nos saiba melhor. Sábia sabedoria com a qual fui educado e aprendi a beber vinho ainda muito jovem.

Pouco se fala ou produz sobre a utilização das uvas para além do vinho. Mas com as uvas também se podem fazer preparações culinárias ou doceiras, sendo a principal, e quase em extinção a «uvada». Parece ser um conhecimento herdado dos romanos que por aqui estacionaram. Prepara-se com o mosto de uva fervido – o arrobe -, ao qual se juntam pedaços de maçãs e peros e, eventualmente, canela. Não tem adição de açúcar. Atualmente há propriedades agrícolas que na época das vindimas fazem «uvada», em particular na região do Oeste.

 

 

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 O doce que parece estar, também, em extinção é Uvas Ferraes em Doce receita que se encontra no Livro de Receitas da última Freira de Odivelas,

Verbo, 1999, com introdução, atualização do texto e notas de Maria Isabel de Vasconcelos Cabral. Usam-se grãos de uva sãos, golpeiam-

se retiram-se as grainhas, e pesam-se. Colocam-se numa vasilha de ir ao lume com um pouco de água e deixam-se ferver, e depois escorrem-se.

Pesa-se um terço do peso das uvas de açúcar que se leva ao lume até obter ponto de gancho, juntam-se as uvas e deixa-se ferver ligeiramente,

ficando com um pouco de calda.

 

 

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Uvada, (C) foto da C M Torres Vedras

Na província, era hábito guardar no sótão belos cachos de uvas até à festa de passagem de ano. Era uma forma de obter «uvas passas» para festejar, e parece que se sabiam sempre melhor do que as compradas já embaladas.

© Virgílio Nogueiro Gomes