As cestas que trouxeram o mata-bicho

 

Matar o bicho, mata bichar, desjejuar são termos que acabam por significar o mesmo: tomar a primeira refeição do dia, hoje chamada por todos de pequeno-almoço. Há várias estórias para justificar a expressão de mata-bicho. Por curiosidade transcrevo o texto publicado no jornal “O Campeão”, de Vila Real, em 19 de Maio de 1897, e assinado por Guerreiro, e com o título “O Mata-Bicho”:

“Muita gente ignora ainda d’ onde deriva a expressão matar o bicho, phrase de que o preto em África se serve em todas as circumstancias da vida, e sem a realização das quaes nada faz em seu proveito ou em proveito de outrem.

Eis a explicação d’ este uso realista, segundo Franklim:

Em julho de 1719 tendo falecido repentinamente em Paris a mulher d’ um alfaiate, o marido, julgando que a esposa tivesse sido victima de envenenamento, deu parte às autoridades locaes, e tendo estas mandado proceder à autopsia, foi encontado vivo sobre o coração do cadáver um verme de duas pollegadas de comprido e cuja natureza era completamente desconhecida dos facultativos presentes.

Um dos médicos, desejando conhecer o grau de vitalidade do verme em questão, metteu-o por espaço de duas horas dentro de um copo contendo acido phenico, a que o animal resistiu. Então experimentado o álcool, morrendo o bicho immediatamente logo que se achou em contacto com uma porção de aguardente de 23 em que foi mergulhado.

Desde então foi reconhecida a necessidade de se tomar diariamente uma porção d’ álcool, para succeder como à mulher do alfaiate.

É por isso que se chama mata-bicho ao codore de aguardente que faz uso o preto n’ África a toda a hora, e alguns operários, de inverno, quando vão para os trabalhos.

Esta explicação encontrei-a eu num velho alfarrábio.”

 

Reprodução do jornal

 

A semana passada tive a oportunidade de participar na apresentação de um mata-bicho, representando as tradições locais, em Vila Real e integrado no evento “Saber Trás-os-Montes”, organizado pelo Grémio Literário de Vila Real e este ano dedicado “A Gastronomia na literatura trasmontana e alto-duriense”. A apresentação do “Mata-bicho” esteve a cargo de João Leite Gomes, que para além de uma palestra sobre esta expressão, e da sua prática, também palestrou sobre “O Ciclo das refeições rurais”, e organizou um mata-bicho que não seria exatamente a sua função tradicional pois todos já tínhamos tomado o pequeno-almoço, não sendo, portanto, para dejejuar. Mas todos atacámos com apetite e lá foram todas as mercadorias e outras confeções. Verão pelas fotos a constituição deste repasto, e que constava de cebolas e tomates rachados, azeitonas curadas, carne gorda, bacalhau cru, broa de milho, pão de centeio, aguardente e figos secos, leite, café de saco, mel e caldo de cebola.

 

Um dos cestos com pão

Figos secos

 

Azeitonas

 

Carne (chicha) gorda

 


Bacalhau seco, cebolas e tomates rachados

 

O excelente caldo de cebolas que cozem com duas chouriças inteiras

 

 

O autor, João Leite Gomes, o primeiro à esquerda

 

Lembro-me de que, em minha casa, quando havia tarefas especiais no campo como a apanha de batata, apanha de azeitona, nas vindimas e dia de matança de porco, o mata-bicho era como que um ritual. Juntam-se as pessoas todas e esta primeira refeição era uma festa de homens a que começaram a juntar-se as mulheres e, por isso, passou a haver também chocolate quente. Para tudo o mais era igual. O bacalhau era desfiado por cada um. Com as mãos desfiava cada um a porção que queria. Depois partia-se para a faina. E ainda havia as sopas de cavalo cansado!

Mas em Vila Real decorriam ainda mais três palestras: Elísio Amaral Neves que se pronunciou sobre “Gastronomia vila-realense: Algumas das primeiras referências na imprensa local”, Ernesto Rodrigues sobre “A primeira sobremesa” (a aletria) e eu que fiz uma comunicação acerca da “Linguagem do património imaterial: a alimentação, alguns exemplos”.

© Virgílio Nogueiro Gomes