Só se conhece verdadeiramente um povo quando se aprende a viver com o seu quotidiano e a entender como se instalaram os seus hábitos. Por isso vamos acompanhar esse sentimento de que a culinária (ou, de forma mais elitista, a gastronomia) faz parte do património desse povo. Até porque a forma como se foram instalando esses hábitos tem a ver com as posturas sociais, decisões históricas e acidentes da Natureza.
A Madeira foi sempre vista como um paraíso. Pela sua paisagem de encanto e pelo seu clima moderado não admira que desde o século XV, depois de descoberta, os próprios descobridores se tenham entusiasmado. E foi pela Madeira que se começou a grande divulgação para consumo do açúcar de cana, até aqui raridade, muito caro e importado dos Orientes. Por acção do Infante D. Henrique foi introduzido o cultivo da cana e estabelecido o primeiro engenho de açúcar. Só um século depois se estabeleceria o primeiro engenho no Brasil.
O açúcar é, de facto, o produto que mais alterou os hábitos e tradições alimentares dos portugueses, contrariamente ao que se diz das especiarias, pois estas eram efectivamente uma moeda para trocas internacionais e apenas usadas nas mesas muito ricas.
Mas as gentes da Madeira souberam com engenho conciliar-se com as dificuldades da Natureza. Contrariaram o acidente do terreno fazendo planaltos artificiais de terra produtiva. E resolveram o problema da água criando canais que levam as águas das ribeiras às terras de produção.
Por estas razões quando se vai à Madeira não se pode ficar pelo Funchal esquecendo o litoral e as terras interiores. Conhecer a região é ir à procura das lapas onde a tradição as instalou, de preferência em Câmara de Lobos, e comê-las grelhadas ou em arroz. Percorrer toda a costa marítima é uma aventura inesquecível para descobrir os petiscos locais.
Decerto que a actividade piscatória determinou, por razões óbvias, as atracções culinárias. Em qualquer recanto onde haja pescadores há boas surpresas. Mas, na madeira, no capítulo de peixes, não se pode deixar de referir os dois símbolos mais conhecidos: o atum e o peixe-espada (preto). O atum come-se assado, de escabeche, salpresado e em bifes. Qualquer das opções é um prazer. No entanto apetece citar o salpresado pelas origens decerto de aproveitamento integral do peixe aplicando-lhe uma técnica primitiva e eficaz de conservação pelo sal. Quanto ao peixe-espada, apesar de vulgarmente ser apresentado em filetes, grelado, de cebolada e no forno, há um sem número de formas inventivas de o cozinhar. Mas não podemos deixar de escrever sobre peixes sem referir o prato que nasceu da própria actividade piscatória: a caldeirada. Prato rico pelas variedades de peixe conforme a época do ano e por vezes conforme as variedades aparecidas nas redes. Não vamos aqui citar todas as variedades de peixes que se podem encontrar na Madeira pois estamos certos que lhes abrimos o apetite para em breve as descobrir no local.
Quanto às carnes, se não temos a mesma variedade, temos a habilidade de só fazerem coisas bem feitas. As espetadas são únicas, sempre enfiadas em galho de loureiro. Depois a carne em vinha-d’alhos, ou a carne assada na panela. Até aqui vamos encontrar um cozido à portuguesa mas à moda da Madeira. Feito só com carne de porco recebe vegetais próprios da ilha como batata-doce e aboborinha, e recebe influências do norte de África com o cuscuz.
Surpreendentemente, e com origem possivelmente no regresso da descoberta das Américas, aparece-nos o milho como guarnição ou acompanhamento. Umas vezes cozido e sobretudo frito é uma questão de obrigatoriedade para qualquer pessoa atenta a estas coisas da mesa.
Mas é nos doces que a Madeira mais nos encanta. Já nos referimos à importância do açúcar de cana a partir desta região. É natural que fosse a Madeira a aproveitar-se do seu produto. E o fascínio é maior quando observamos a utilização das frutas locais para sobremesas deliciosas. Desde ameixas, maracujás, anonas, figos, ananases, bananas, papaias, tâmaras, tudo aqui se produz. Mãos habilidosas, fruto de aperfeiçoamento de séculos, produzem nesta maravilhosa terra sobremesas inesquecíveis. Apenas vamos referir a curiosa receita do bolo de mel, decerto nascida da curiosidade e utilização de produtos novos (ou até ao século XVI apenas com função de fármacos) numa combinação excelente que tem perdurado. O bolo de mel é um elogio à Natureza. Contém farinha de trigo, nozes, amêndoas, cidra, erva-doce, cravinho da Índia, pimenta em pó, canela açúcar, mel, laranja (sumo), manteiga, vinho Madeira…
E, claro, não podíamos encerrar sem citar esse glorioso néctar da Madeira que é o seu vinho generoso. Ultrapassou fronteiras e entra em confecções culinárias de renome internacional.
Não queiram saber mais. Só há uma forma de satisfação e entendimento. Ir à Madeira e descobrir.
E voltar.
© Virgílio Gomes
Publicado na revista Atlantis nº 6 Nov/Dez 1997
Foto © Adriana Freire