(Sopa de Alheiras do Restaurante Flor de Sal de Mirandela)
Quem não teve já dúvidas de diferenciar, pelo nome, a sopa do caldo? E quantas vezes pedimos uma sopa e nos servem um creme? Esta questão deixa-me um pouco irritado pois gosto de mastigar os elementos que compõem a sopa. Talvez por habituação e em minha casa sempre se chamou sopa ou creme conforme o tipo de confecção. Outra irritação que naturalmente desponta em mim é assistir quem supostamente educa crianças, apresentarem a sopa como um castigo.
Para tirar dúvidas socorri-me da minha ajuda predilecta: a Grande Enciclopédia da Cozinha de Maria de Lourdes Modesto. Para caldo, e transcrevo: “Líquido alimentar que se obtém pela cozedura de peixe, carne ou legumes em água temperada com algum sal.” Para sopa, e volto a transcrever da mesma obra, “Dá-se este nome a um caldo mais ou menos grosso que é produto da cocção de certos alimentos: carne, legumes e peixes.” Parece em linguagem simples que do caldo se parte para a sopa. Mas não é assim tão simples.
Por curiosidade da leitura do livro “Arte de Cocina”, 1611, de Francisco Martinez Montiño, cozinheiro da corte de Espanha, encontramos duas receitas, uma de “Sopa à la portuguesa” e “Sopa de vaca à la Portuguesa”. Esta última tem um comentário do autor: “os portugueses comem muito esta sopa”. Ora seguidamente encontramos no manuscrito de Francesco Gaudenzio (1648-1733), frade toscano que foi para Roma como cozinheiro da Cúria Romana, e tem uma receita “Per far la zuppa alla portughese detta da villano” que eu traduzo como Para fazer sopa à portuguesa dita à camponesa. Este manuscrito está transformado em livro com o título “Il Pan Unto Toscano” depois da investigação de Guido Gianni da Academia Italiana de Cozinha. O que liga estes dois autores com documentos escritos quando em Portugal, nesta época, não tínhamos ainda um receituário publicado? No caderno de receitas da Infanta D. Maria não consta nenhuma sopa! Sempre se ouviu dizer que a sopa era um alimento dos pobres. Se pensarmos que na data em que se publicou o “Arte de Cocina”, em Portugal reinava o rei de Espanha. Possivelmente na corte espanhola começou a haver mais notícias dos hábitos dos portugueses. Por isso Montiño apelidará aquelas duas sopas de “à portuguesa”, porque são diferentes das espanholas? Ou porque as nossas são melhores e mais consistentes? A de Gaudenzio, sem copiar nenhuma das de Montiño, é ainda muito semelhante às nossas actuais sopas campesinas sem terem tanta quantidade de pão. E asAliás o que me faz supor a passagem dos caldos para as sopas é a introdução de pão. Não dizemos ainda hoje em dia fazer “uma sopinha” quando molhamos o pão num molho? Prática que eu aprecio não sem às vezes ouvir que essa prática não é elegante ao que eu respondo que, além de sentir o prazer de continuar com o gosto do molho, estou a fazer um elogio à cozinha. E tanto o faço com o molho que fica da Ameijôas à Bulhão Pato como ao molho de um simples guisado de carne.
Em Portugal as primeiras receitas de sopas e caldos aparecem com a publicação em 1680 do livro “Arte de Cozinha” de Domingos Rodrigues. Dois caldos sendo um de galinha e outro curioso à francesa que também é chamado de sopa. É importante ler a receita para esclarecer, ou confundir mais a diferença entre caldos ou sopas. Começa por referir que são necessários dois pombos, duas perdizes, um pato inteiro, um coelho partido aos pedaços, uma galinha aos pedaços, um chouriço, uma posta de presunto, toucinho picado, ramo de cheiros, alface, chicória e pimenta moída. Depois de tudo “cozido e temperado com sal e os adubos pretos que lhe faltavam, põem-se num prato dois pães feitos em sopas e regados com o caldo, de modo a abeberar. Antes de servir, coloca-se por cima a carne peça por peça… regados com sumo de limão. Este caldo é bom para merendas guarnecido com fígados de galinha.” Podemos observar que o autor utiliza os termos sopa e caldo, sobressaindo que o caldo é o produto obtido com a cozedura dos ingredientes e que passa a sopa com a adição do pão. Tem ainda o livro uma Sopa à Italiana, Sopa de queijo e lombo de porco ou de vaca, Sopa de queijo de caldo de vaca, Sopa de qualquer género de assado, Sopa dourada, Sopa tostada, Sopa de peros camoeses, Sopa de amêndoa, Sopa dourada de nata, Sopa de Natas e Outra sopa de natas. Destas sopas seis são doces e as restantes cinco são salgadas. Apenas duas não são confeccionadas com pão: a italiana e a de amêndoa. Mas o pão também é uma herança do legado mouro das suas sopas, e que variaram algumas delas em açordas.
Continuando nas referências publicadas, em 1780, Lucas Rigaud, no seu livro “Cozinheiro Moderno, ou Nova Arte de Cozinha…”, inscreve sessenta e duas sopas e caldos como por exemplo um “Caldo Geral e Ordinário” ou “Outro caldo para diferentes sopas” além de vários caldos para diferentes doenças, identificando-as. Da leitura de todas as receitas, depreende-se também que os caldos são sopas leves e também o ponto de partida para muitas sopas nas quais a adição de pão é comum. A questão das sopas nunca foi alvo de grandes referências alimentares nos historiadores do século passado pois limitavam-se muitas vezes a estudar ementas palacianas que não continham esta confecção. Mais recentemente estuda-se o que seria a alimentação da população em geral, e aí, deste a época medieval surge a sopa como um elemento básico da alimentação.
Voltando a referências internacionais cito agora o “Grande Dicionário de Culinária” de Alexandre Dumas (1803-1870) e publicado em 1873 já após a sua morte. No verbete “Caldo” começa por escrever que Não existe uma boa cozinha sem um bom caldo, considerando os caldos como um ponto de partida para várias confecções culinárias elogiando o caldo como o principal contributo para a excelência da cozinha francesa, e ainda às mulheres do nosso povo. Os caldos são, pois, assumidos como uma prática comum a toda a população. Já quanto á “Sopa” o verbete tem um texto mais curto que transcrevo: Chama-se sopa a todo o alimento destinado a ser servido em uma sopeira e a abrir a refeição. Consideração redutora…! Desde que servido numa sopeira, caldo ou sopa já é uma sopa. Depois apresenta várias receitas onde inclui a caldeirada que eu também classifico como a uma “sopa completa”, até uma Açorda com a nota que em Lisboa se come com um garfo, possivelmente pela grande quantidade de pão utilizada. Citando ainda Alexandre Dumas este refere que “um gourmet de verdade, convidado para jantar fora – pelo mero aspecto, à primeira vista, ao primeiro aroma da sopa – logo fará uma ideia de toda a refeição.”
De novo nas referências nacionais, Aquilino Ribeiro (1885-1963), no seu livro “Geografia Sentimental” cita uma “Sopa de feijão bem migada, com tempero de orelheira e chouriço”, significando migada porque tem pão. Depois e ainda na mesma obra escreve que “não posso ver uma sopeira torcer o pescoço a um frango”. Aqui não quer referir-se a nenhuma sopa mas ao nome que era dado a certas empregadas domésticas e não o recipiente “terrina coberta”. Porque se chamaria a estas domésticas de “sopeiras”? Hoje em dia, o termo sopeira, adquiriu um sentido pejorativo, mas naquele tempo poderemos considerar que estas empregadas fariam na cozinha essencialmente as sopas, as sopas completas que constituiriam a base alimentar. Mas se atentarmos ao provérbio popular encontramos em “Ser sopa”, como coisa fácil. Mas também “Estar feito uma sopa”, estar completamente molhado, ou ainda “esta sopa vai acabar” como sendo uma situação boa que termina. Mas em “Viver às sopas de alguém” que significa viver às custas de outro e possivelmente porque uma sopa é um alimento base. E para terminar as citações populares, “Sopa sem pão, no Inferno dão”, fazendo uma vez mais o elogio do pão como elemento fundamental das sopas.
Mas as sopas podem ser cremes ou purés, aveludadas que inicialmente seriam sempre engrossadas com farinha e manteiga, e depois com gemas de ovo e ou natas. Nos caldos temos a delicadeza dos consomes que são caldos clarificados e muitas vezes temperados. E a canja, será caldo ou sopa? A nossa canja é um caldo galinha com arroz, mas se formos ao Brasil, canja é uma sopa completa. Para já não falar da “Canja de Papagaio” como é citado no diário de viagem de D. Francisca de Bragança (1842-1843), quando viajou do Brasil para França. E depois ainda há as sopas frias.
Mas porque não chamamos sopa ao “Caldo Verde”? E porque chamamos “Calducho” a uma sopa cujo nome nos parece um caldo? E porque é que “Caldudo” é um caldo quando a sua consistência é a de uma sopa?
Terei que deixar para uma próxima crónica a caracterização das sopas portuguesas e naturalmente fazer o elogio do seu consumo.
Comam sopa. Sempre.
© Virgílio Nogueiro Gomes