Livros no Feminino

No início da primavera deste ano de 2024, dei uma entrevista durante a qual afirmei que o século XX foi marcado por livros escritos por mulheres e, muitas vezes, apenas dirigidos às mulheres. Apeteceu-me, depois de ver a entrevista publicada, fazer um relato que confirmasse aquela minha afirmação. Vou fazer uma lista por ordem cronológica dos livros, e uns pequenos comentários para cada obra.

Apesar de ser um homem, Carlos Bento da Maia (pseudónimo de Carlos Bandeira de Melo), não podemos esquecer o Tratado Completo de Cozinha e Copa, 1904, no qual o autor escreveu no “Prólogo”: “No nosso país, infelizmente, estão muito atrasados os ensinos profissionais e a maior parte dos diretores de asilos  têm o mau senso de ter serviçais para as educandas; de modo que em vez de criarem raparigas aptas para ganhar facilmente a vida com honestidade, criam pseudo-senhoras pretensiosas com desprezo pelos trabalhos manuais e tendo por futuro a miséria ou a vadiagem.” Quase a terminar afirma:” O nosso ideal seria que este livro pudesse ser considerado como uma obra de estudo e que nos asilos o aproveitassem para a educação de criadas.” Tem depois um capítulo de “Generalidades” com muitos ensinamentos, mas volta a insistir: “Nas Classes médias a cozinha preocupa e com forte razão das senhoras, porque raras vezes os serviçais satisfazem completamente, e muitas vezes estão privadas deles.” Quem lê o livro, com facilidade, lhe irá parecer que o objetivo não será só as criadas, mas será um belo inventário do que se comia em Portugal no início do século XX.

 

1899Cosinha Portugueza ou Arte Culinaria Nacional, Collaboração de senhoras, Imprensa Académica, Coimbra, que num primeira página do Editor tem o vocativo: “Ás boas donas de casa”. Apesar de ser um livro coletivo, tem na sua introdução: “… instruir a família na proveitosa arte de cosinha portuguesa;” … “No fim d’este livro vão algumas páginas pautadas com destino a rectificações que a boa dona de casa se digne fazer, assim como a descripção de novas receitas.” Por curiosidade veja uma crónica anterior clicando aqui.

 

 

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1902 – Segunda edição ampliada, do livro anterior, que mantém as citações.

1924A cosinha familiar, Agarena de Leão, Sociedade Nacional de Tipografia, Lisboa. Começa com um texto de 5 páginas, explicando as razões de publicação deste livro, apesar de “Quanto se tem escrito sobre culinária!”, faltando obras para “facultar os conhecimentos basilares da sua educação doméstica …”. Apresenta depois o livro com um texto para quem é destinado o livro: “Duas palavras à leitora”. Terá havido uma edição anterior, com sucesso, visto que esta é a 2ª.

 

 

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1925 - Mais de Cem maneiras de Cosinhar Bacalhau, Cem maneiras de fazer Doces para Chá, Cem Maneiras de Fazer Doces de Prato, Cem Maneiras de Cosinhar Carne, Cem Maneiras de Fazer Doces de Frutas, Cem Maneiras de Cosinhar Peixes, Cem Maneiras de Fazer Pudins, encadernados em conjunto com o título Biblioteca Culinaria, Febrónia Mimoso, Livraria Civilização, Porto. “Eu compilei-o apenas para as boas donas de casa, que desejam variar os seus menús”. “Às gentis leitoras.” Trata-se de um conjunto de fascículos, colecionáveis, e em todos está impresso o objetivo de se destinarem às “donas de casa”.

1925Doces e Cosinhados, Isalita (edições até 25ª 1977), Livraria Bertrand, Lisboa. O livro ficou a dever-se à colaboração de duas amigas, que publicaram os seus conhecimentos culinários: Maria Isabel de Sousa Campos Henriques e Angela Carvajal Y Pinto Leite Telles da Silva. O nome "Isalita" resultou da abreviatura de "isabel" e "Angelita". Apesar de não constar especificamente o destino do livro, apercebe-se uma linguagem simples e diferenciada, dos poucos livros de homens nesta época.

1930 Cem Maneiras de Cosinhar Aves, Febrónia Mimoso, Tavares Martins, Porto. Este só é mais um folheto que, não tendo prefácio, publica no início uma carta de uma amiga, Perpétua Constante da Sinceridade, onde se pode ler: “Não sei, minha querida porque não abres um curso de cosinha, cá no burgo podre do Pôrto. Se abrisses, acredita o que te digo, tinhas a frequentá-lo tudo o que de mais chique e distinto há no madamismo indígena. Fazias um sucesso e demonstravas a essas elegantes de hoje, que uma das coisas que muito agrada aos maridos, por mais papos secos que eles sejam, é um bom jantar e um bom almoço; embora eles nos queiram fazer acreditar, que se alimentam de folhas de rosas e de chocolates Nestlé.”

1933Guia da Doceira em sua casa, Maria Margarida, Papelaria e Tipografia Treze, Cartaxo. Este livro, que teve pouca divulgação tem uma curiosidade: é que cada receita tem o nome ou dedicatória a artistas da época que pisavam os palcos do teatro. O primeiro texto, tipo prefácio, e assinado por João Gaspar (Actor), começa assim: “Minhas Ex.mas Senhoras: … Para mim, O Guia da Doceira em sua casa, d’onde mandei fazer algumas experiências, com completo êxito, é digno de existir em casa de tidos os Artistas e das boas donas de casa.”

 

 

 

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1937Arte e Economia, volume I Culinária, Estela Brandão, Domingos Barreira, Porto. Começa por dedicar o livro à sua neta. Podemos ler no “Prólogo” o seguinte: “Esperando benevolência da parte das leitoras, … Parece ser assim útil às meninas inexperientes, que se vejam em dificuldades na sua vida caseira…”.

1937 - Arte e Economia, volume II Recepções, Estela Brandão, Domingos Barreira, Porto. Neste segundo volume continua a dedicar o livro à sua neta, e neste “Prólogo”, escreveu sobre os dois volumes publicados: “… e que eles possam ser para todas as senhoras, auxiliares e companheiros na árdua e compensadora tarefa de donas de casa.”

1937Arte e Economia, volume III, Enciclopédia Caseira e Criação de Aves e Coelhos, Estela Brandão, Domingos Barreira. Terceiro e último volume, também dedicado à sua neta, no Prólogo pode ler-se: “Parece-me condensar nesta obra tudo quanto pode ser útil a uma dona de casa. Quis também que o meu livro fosse proveitoso às creadas, que muitas vezes são inteligentes, mas não possuem os conhecimentos precisos para preencher condignamente o seu papel. Oxalá a todas seja proveitoso, …”. Também inclui algumas receitas práticas com alimentos.

 

 

 

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1941- A Cosinheira das Cosinheiras, Rosa Maria (1ª edição S/D, 5ª edição 1941 até 30ª edição 1982), Livraria Civilização Editora, Porto. Rosa Maria, é o pseudónimo de Fernando da Silva Correia e, este livro entra na listagem por ter o seu destino serem: “Às senhoras que dirigem a vida do lar”., e, de facto, fez muito sucesso.

1944As 500 Melhores Receitas para Cozinhar, Empresa Literária Universal, Lisboa. “Receitas práticas, ensinadas pela imagem e pelos processos ultra-modernos, indispensável a todas as donas de casa”. “Às Leitoras”.

1945O Livro de Pantagruel, Berta Rosa Limpo, Edições Século, Lisboa. Num primeiro texto de abertura dedica: “A todas as «Cozinheiras amadoras» …”. Depois num divertido prefácio, a certa altura escreveu: “Os homens ficam pelo «beicinho» se, depois de um dia de trabalho, as suas mulheres lhes fizerem um jantar apetitoso e bem-apresentado.”

1949 - A Mulher na Sala e na Cozinha, Laura Santos (edições até 16ª 1983), Edição da Livraria Editora Lavores e Arte Aplicada, Lisboa. Num primeiro texto, como que prefaciando, escreveu: “Desejamos, cara leitora, que não veja no nosso trabalho somente «mais um livro de receitas»; nós pretendemos mais – que ele seja para si, leitora, um novo livro de receitas de cozinha. … fazer da culinária uma arte que pode competir, pelo seu valor, com muitas outras, entre as melhores. … Pretendemos que a leitora encontre no nosso livro, não o formulário banal, mas a arte de bem fazer - … Dito isto, leitora amiga, desejamos-lhe os melhores resultados …”.

1952Guia da Cosinheira Familiar, Clara T. Costa, Empresa Literária Universal, Lisboa. Começa o livro com uma dedicatória: “Às Leitoras” … “…facilitando às donas de casa a confecção dos almoços e jantares…” … “Apresento, pois, às senhoras que desejem ter uma cosinha razoável e nutritiva…”

1953ABC da Cozinha, Irene Vizi, Instituto Culinário Irene Vizi, Lisboa.  A autora explica que os livros são os manuais ideais para os cursos de cozinha que patrocinava.  “Este curso tem a grande vantagem de poder chegar a todos os lares, facilitando o estudo às donas de casa que, pelos seus múltiplos afazeres, têm pouco tempo disponível, e àquelas que, nas diferentes terras da província ou do Ultramar, mantêm um interesse sempre vivo e crescente pelo desenvolvimento dos conhecimentos na arte de bem cozinhar.”

1960Coisas Boas, Conferência do Imaculado Coração de Maria, DiárioGráfica, Lourenço Marques. O livro foi concebido para melhor assistir os necessitados, com receitas das senhoras ligadas à CICM. Continua a publicar-se até hoje, em novas edições.

1960Grande Concurso das Receitas, Companhia Industrial da Matola, Lourenço Marques.  Livro com as receitas do concurso. “… levou a todas as donas de casa o estímulo necessário para a descoberta de novas variedades culinárias.” “À Mulher do Ultramar que seguindo as tradições da mulher portuguesa, jamais descura ampliar os seus conhecimentos de Culinária e Doçaria.”

1962Cozinha do Mundo Português, M. A. M. (Maria Adelina Monteiro Grilo e Margarida Frutscher Pereira), Livraria Tavares Martins, Porto. “Será antes uma «Iniciação à Culinária» dirigida a todas as donas de casa, que tantas vezes se têm visto em sérios apuros, ao ter que ensinar ou mesmo preparar um peixe cozido de modo a ficar branco e durinho…”. Livro extraordinário e pouco conhecido.

 

 

 

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1962O Livro de Ouro da Culinária, Wanda von Alefeld, Livraria Luso-Espanhola, Lisboa. “Conselhos às donas de casa, … Para não experimentar o percalço, passe desde já a ser uma boa cozinheira e tenha um lar em boa ordem para que o marido somente se sinta feliz na sua própria casa.”

1962Cozinha Regional Portuguesa, Maria Odete Cortes Valente, Editorial, Organizações, L.da, Lisboa. “Leitora”, é assim que abre o livro. (seguiu-se com uma 2ª edição em 1973 que mantem dirigir-se a “Leitora”, mas, nas edições seguintes, abandona).

 

 

 

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1963Cooking in Portugal, American Women of Lisbon, Guimarães Editores, Lisboa. (1ª edição em 1953 e depois em 1976). “«Cooking in Portugal» foi concebido pela primeira vez há 23 anos, para auxiliar as americanas recém-chegadas a Portugal e introduzi-las aos costumes e produtos desta terra.”

1966ABC da Culinária, Etelvina Lopes de Almeida (edições até 4ª 1975), Publicações Europa-América, Lisboa. Na Apresentação refere receber “… cartas solicitando ajuda para diversos problemas comuns à maioria das mulheres do meu tempo.” … “Eram mulheres que, tendo passado uma vida a estudar, se encontravam debilmente preparadas para as tarefas de uma dona de casa”; … “Foi pensando nelas que surgiu este livro…”

1967 As Receitas da TV, Maria de Lourdes Modesto, Verbo. Parece que o livro foi publicado pela insistência das “senhoras espectadoras”, que lhe dirigiam cumprimentos e elogios e depois a falta das receitas pois que, nem sempre, conseguiam anotar. Assim dez anos depois do primeiro programa, até porque muitas vezes eram receitas que as espectadoras enviavam.” E acrescenta: “Deixo, pois, ao critério da leitora as necessárias adaptações.”

 

 

 

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Esta lista não é exaustiva. Há mais exemplos! A minha ideia era fixar algumas obras de mulheres, que se dirigiam a outras mulheres. Esta prática terá começado discretamente em finais do século XVIII em França, e depois temos exemplos extraordinários no século XIX no Reino Unido, quando os livros de cozinha ainda eram raros. Hoje há muitos livros de cozinha e alguns com poucos cuidados. Este exceção de informação não deixa de criar alguma desinformação. Estes livros do século XX, eram livros nos quais as autoras apenas publicava receitas depois de experimentadas. Por isso o meu reconhecimento a estes livros que são raridades pela qualidade do seu receituário.

© Virgílio Nogueiro Gomes