Rissol, Rissóis e Rissoles
Há muitos anos que pensava que os rissóis eram uma especialidade portuguesa, um produto nosso. À medida que fui crescendo e viajando fui percebendo que os rissóis também era de outros, e particularmente de franceses e de ingleses. Sempre identifiquei os rissóis como um emblema alimentar lisboeta e que o seu recheio era de peixes ou mariscos. Com o tempo fui descobrindo outros detalhes, mas nunca me lembrei de escrever sobre os rissóis, de tal forma que me aconteciam num quotidiano português.
Dos vários autores franceses percebi que já no século XIII existia a palavra «rissole» que não era o mesmo produto que agora são os rissóis. O termo «rissole» era atribuído a uma massa que era «rissolé» numa frigideira. Consistia «rissoler» em dar uma cor dourada a uma massa numa frigideira não sendo frita. Depois foi adicionado com carne picada, mas a denominação não foi alterada e hoje temos, mesmo em França, o «rissole» idêntico ao nosso rissol, variando os recheios. Enquanto em França o recheio terá começado por ser de carne e só mais tarde entram peixes e mariscos. Entre nós quando interroguei alguns amigos, todos associam o rissol a recheio de peixes.
Em França, o primeiro autor que encontrei foi Menon (nome controverso e pseudónimo) que publicou no curioso livro Les Soupers de La Cour: Ou l’art de Travailler Toutes Sortes D’aliments Pour Servir les Meilleurs Tables, Suivant Les Quatre Saisons”, 1739 e 1755; e ainda no seu mais conhecido livro e inovador para a época La Cuisinière Bourgoise, Suivie de L’Office: À L’Usage De Tous Ceux Qui Se Mêlent De Dépenses de Maisons: Contenant la Manière De Disséquer, Connaître Et Servir Toutes Sortes de Viandes…, 1746, 1760 e 1778, uma receita básica para fazer «Rissoles». Começa por escrever que os rissóis se podem fazer com vários recheios sugere como primeiro com carne assada no espeto depois cortada em pedacinhos. Propõe uma massa com farinha, manteiga, água e sal. Depois de bem amassada estender com rolo até ficar bem fina. Rechear a massa e fritar, e servir como hors-d’oeuvre.
Uma obra invulgar para a época foi o Dictionnaire Domestique Portatif, em 3 volumes, 1769, e com autoria de Augustin Roux, François-Alexandre Aubert de La Chesnaye Des Bois, e Jean Goulin. Tem para «rissole» uma definição idêntica às anteriores e explica que se fazem rissóis magros, com chocolate, com espinafres, com marmelada de damascos, e com cogumelos.
Um livro muito popular para os franceses e uma cozinha burguesa foi o La Cuisinière de la Campagne et de la Ville, escrito por Louis-Eustache Audot, em 1832, que dá uma receita para rissóis com massa areada e recheados com carne picada ou outro recheio. Fritar na frigideira e servir quentes. Nesta época já tínhamos em Portugal o dicionário Moraes, 1831, com muitos termos franceses mas sem entrada para rissóis.
Alexandre Dumas (1802-1870) em o Mon Dictionnaire de Cuisine, primeira edição 1873, para RISSOLE escreveu: “Espécie de pastelaria feita com carne picada e com especiarias, embrulhada numa massa e frita em banha de porco. Faz-se primeiro pequenas bases ovais em massa esticada, preenchem-se com um recheio de capão, medula de boi, sal e pimenta, tudo bem picado, e depois dos rissóis montados, serão fritos em banha de porco.” A citação de Dumas é importante pela sua dimensão enquanto escritor.
Joseph Favre 1849-1903), o meu autor preferido da segunda metade do século XIX, no Dictionnaire Universel de Cuisine Pratique, primeira edição 1883, para RISSOLE escreveu: “Carne picada e com molho envolvidos em massa e depois frita”. Acrescenta que a grande diferença com os raviolis está na forma de cozedura. O recheio pode ser variado. Dá depois a receita para Rissóis de foie gras trufado (Alta cozinha), Rissóis à la reine, Rissóis à la Montglas, Rissóis à la financière, Rissóis à la semoule, e Rissóis aux bisques.
Um livro extraordinário, pouco conhecido dos portugueses, é o Gastronomie Pratique, de Ali-Bab (pseudónimo de Henri Joseph Séverin Babinski 1855-1931), cuja primeira edição é de 1907, com várias edições seguintes. Eu tenho a 4ª edição de 1925, revista e ampliada que atinge as 1160 páginas. Para a entrada «Rissoles» começa por afirmar: “Os rissóis podem ser considerados como uma variedade de «ravioli» fritos.” E continua com uma surpresa: “A massa empregada para os rissóis é geralmente a massa folhada, mas também se usa a massa areada*, de massa para servir fina e massa de brioche comum. … Fritar os rissóis simples ou depois de os ter passado sucessivamente em ovos batidos e pão ralado. … desde que tenham uma boa cor, escorrer e servir como hors-d’oeuvre quente ou como entradas, numa travessa com guardanapo e decorada com salsa frita.” Depois dá exemplos de 11 guarnições para apresentar os rissóis. Dá ainda uma receita específica para Rissóis de molejas e de cogumelos
*podem igualmente fazer rissóis como entradas doces usando marmelada de frutas ou compotas.
No Larousse Gastronomique, de Prosper Montagné, com primeira edição em 1938 pode ler-se para RISSOLE: “Pastelaria feita com massas diversas (sobretudo folhada), com recheios diversos em forma de «chausson» ou outra e geralmente terminada com fritura.”
Dictionnaire de l’académie des Gastronomes, primeira edição 1962, para RISSOLES: “… Os rissóis remontam pelo menos à Idade Média: eram bolachas dourada na frigideira. Mais tarde foram recheadas com carne ou outros… Coloca-se o recheio que se queira: carne picada, rins, cristas, frango, ou ainda lavagante, lagostins, caranguejos ou camarões picados. Cogumelos e trufas completam felizmente o sabor. Os rissóis fazem-se quase sempre fritos, mas podem também cozer no forno ou na frigideira. Terminam-se na hora de servir, muito quentes, como hors-d’oeuvre ou como pequena entrada.”
Vejamos menus de alguns eventos importantes onde constam rissóis:
- Casamento do Príncipe Alfred (segundo filho da Rainha Victoria) e Grande Duquesa Maria da Rússia em 09 de março de 1874 onde consta: “Les Rissolles de Volailles – Chicken Rissoles”. Aproveito para lembrar que foi para este casamento que foi inventada a bolacha Maria, e que poder ler a sua história clicando aqui;
- Banquete jantar em 3 de novembro de 1885, em França e que contou a a presença portuguesa do Visconde de Pernes, embaixador extraordinário em França: “Rissole de Volaille à la Reine”;
- Jantar e Concerto, Winchester House Londres, em 11 de junho de 1887: “Rissoles of Foie Gras à la Chasseur”
- Thanksgiving Dinner, Hotel Savoy, New York, 30 de novembro de 1899 : Rissoles of Oyster Crabs”
Na coleção, Menus da Família Real, no Palácio Ducal de Vila Viçosa, aparecem rissóis em 17 menus dos quais destaco:
- 25 de maio de 1901: “Rissoles de volaille”, para uma ceia no Palácio Nacional da Ajuda para 2000 pessoas
- 21 de junho de 1902: “Rissoles em fritura”, servidos ao Príncipe Luis Filipe no Cruzador D. Carlos I, em vaigem a Inglaterra
- 06 de dezembro de 1904: “Rissoles à la Montglas”, servidos à Rainha D. Amélia em visita a sua irmã Helena em Turim
Outros rissóis nessa coleção: à la Dauphine, à la Parisienne, à la Reine (4), à la Toulouse, aixoises, de poulet, Ris de Veau, de volailles (2) e au Parmesan.
E em Portugal o que aconteceu? Como surgiram os rissóis? A primeira referência que encontro publicada em Portugal é no livro de João da Matta, Arte de Cosinha, 1876 com a receita de Rissoles à la Russe com o seguinte recheio: “… picado de gallinha, de vitela ou de caça brava como se faz para os croquetes;”. Depois só encontro no livro de Manuel Ferreira, A Cozinha Ideal, 1933, com Rissóis à: Bensaúde (fígados de galinha), de Camarão, à Indiana (ostras e lagostins), à Pompadour (presunto, língua afiambrada, cogumelos e trufas), à Santo Humberto (cogumelos, coelho bravo e perdiz assada), Vitória (lagosta e trufas), e Rissóis doces (marmelada, creme à base de leite ou de ovos, macedónia de frutas, ou de frutas, de compota, etc…).
É muito interessante encontrar duas receitas para «Rissoles» no livro Doces e Cosinhados de Isalita, com primeira edição em 1925, mas para este texto consultei a edição de 1932. Assim apresenta: “Rissoles à Indiana” e “Rissoles de camarão”. Parece que é a partir desta data que o recheio aparece apenas para peixes e mariscos.
Laura Santos, numa edição de 1945, A Mulher na Sala e na Cozinha, curiosamente não dá a receita para rissóis, mas apenas uma receita para “Recheio para rissóis”, com a denominação já à portuguesa. Transcrevo a receita: “Pica-se ou passa-se pela máquina uma porção de peixe cozido; em seguida faz-se um refogado com um pouco de azeite, um dente de alho picado e muito pouca cebola bem picadinha; depois de estar levemente refogado, deita-se-lhe o peixe e refoga outro bocadinho. Desfaz-se uma colherzinha de farinha de trigo, num pouco de leite, junta-se ao peixe até formar um creme; tira-se do lume, deixa-se arrefecer, juntam-se-lhe duas gemas e leva-se ao lume brando a cozê-las; depois das gemas cozidas e já fora do lume, deita-se-lhe sumo de limão.”
Carlos Bento da Maia, no livrinho Tratado de Cozinha e de Copa, 1947, que é uma edição ampliada da edição de 1921, apresenta uma receita de “Rissoles” ainda com a denominação francesa, talvez por ser uma réplica da edição de 1921. E começa assim: “Constituem os «rissoles» um manjar da cozinha francesa que pode conservar o mesmo posto que lhe caberia também o de pastelinhos de massa tenra. … Aportuguesando a palavra dou um regalo às donas de casa que, com um nome de origem francesa ficam muito satisfeitas.” Para o recheio propõe carnes cozidas picadas, adubadas, e depois “fritas em manteiga, banha de porco ou noutra gordura.”
Um dos meus eleitos: Tasca do Manuel da Gorda - Trafaria
Depois só com Berta Rosa Limpo, Pantagruel, 1945, capítulo Pasteis e Pastelões: Rissois, uma receita para a massa, e recheio com Créme de camarão, de peixe ou carne.
O termo Rissol já surge no Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa de José Pedro Machado em 1952 com a seguinte explicação: “pastel com recheio de carne, peixe ou legumes; é do género f. Segundo Joaquim da Silveira, este «vocábulo tem no ant. fr. As formas roissole e rousole e provém do lat. vulgar russeola, «avermelhada escura», sendo esta denominação devida à cor com que fica a massa envolvente depois de tostada…»”
No curioso livro Arte e Economia, volume 1, 1937, de Estela Beirão apresenta uma receita ainda com a denominação francesa «Rissoles»: “Faz-se a massa dos rissoles, recheiam-se de carne, peixe, camarões ou bacalhau. Qualquer destes recheios é misturado com molho de creme bem temperado de pimenta, limão e salsa picada. Para se o bacalhau deve-se esfiá-lo muito bem, e não empregar muito, para que o recheio não fique pesado. Passam-se no ovo e pão ralado e fritam-se em azeite ou banha. Servem-se bem quentes.”
Maria de Lourdes Modesto é mais simples na Grande Enciclopédia da Cozinha, 1960, com clareza: “Pastel recheado de carne ou peixe que é frito depois de passado por ovo e pão ralado.” Acrescenta ainda que: “Os rissóis são quase sempre recheados com camarões ou peixe. No entanto qualquer recheio pode servir para a sua confeção.” Depois dá a receita para a massa e uma receita para um recheio com camarão. Esclarece que: “Os camarões pode ser substituídos por peixe ou bacalhau. A água para ligar o creme deve ser a que serviu para os cozer. Deve sempre adicionar-se um pouco de leite a esta água e também ao caldo dos camarões. O creme ficará assim mais macio.” Ainda da mesma autora encontramos no livro As Receitas da TV, 1967, uma receita para “Rissóis de atum”, e uma receita para a “Massa dos Rissóis”.
Outro eleito: Taberna Albricoque - Lisboa
A partir desta data começa a ser vulgar a apresentação de receitas de rissóis e especialmente em livros destinados à economia doméstica, ou às donas de casa.
Na famosa Revista Banquete, nº 113 de julho de 1969, é apresentada uma receita de "Rissóis de camarão".
Para terminar vou apenas citar mais uma publicação em livro, Comeres de Lisboa, de António Manuel Couto Viana e Ceferino Carrera, VEGA, 1998, que apresentam uma receita de Rissóis de Peixe ou Camarão, com uma nota que “pode servir de prato principal se for guarnecida.”
Parece-me que a denominação dos «rissoles» terá passado para rissóis a partir dos anos 30 e quase em simultâneo o recheio ficar com as nossas tendências atlânticas com peixes e mariscos. Poderei voltar a este assunto num futuro próximo pois ficaram algumas questões por abordar e o texto está, já, muito longo.
© Virgílio Nogueiro Gomes