Que mal vos fez o 7?

Esta pergunta parece estranha, mas explico em crónica rápida. Tenho o vício de fotografar comida e um gosto especial por doçaria. Pois é sobre dois doces que hoje vos escrevo. Estes dois doces, bolos, são preparados em camadas e, tradicionalmente, eram sete as camadas. Tenho encontrado confecionados com o maior número de camadas e questiono sempre a razão desse “desvio”, sendo que a maioria das pessoas não o sabem.

Começo pela “Bola Doce Mirandesa” sobre a qual já escrevi anteriormente e tenho um texto no meu livro Histórias e Curiosidades à Mesa, Marcador 2023. Sempre que vejo uma bola ponho-me a contar as camadas. Recentemente aconteceu-me, numa feira, numa venda de doces e todas as bolas abertas, cortadas, tinham seis camadas. Questionei o vendedor e desmentiu-me dizendo que todas tinham sete. Desafiei-o a contar comigo e ficou mais surpreendido do que eu: todas as bolas tinham apenas seis camadas, e disse-me que se sentia enganado pelo produtor! Recolhi algumas informações para saber da tradição. A receita que publiquei no livro refere explicitamente que são sete as camadas.

 

 

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Bola doce mirandesa com 6 camadas

O número sete tem muito significados no Oriente e junto da comunidade judaica confirmei a sua importância como um número da cabalística religiosa. Maria Emília Ferreira, publicou em 2017: “A receita é tipicamente de origem judaica…, mas repare que tem 7 camadas. O número 7 que na geometria judaica quer dizer: ABUNDÂNCIA. Este número tem alusão a prosperidade e os cristãos novos só faziam no Natal e na Páscoa.”

Em sequência daquele texto, outro comentário numa rede social pode ler-se: “… em 1492 começou a entrada de judeus em Miranda do Douro. Alguns tornaram-se cristãos novos e fingiram uma assimilação, mas a alma judia prevalecia. … As 7 camadas têm uma significado: os dias da Criação até ao seu Shabath, mas que tinham de acompanhar as festas “ditas” cristãs e comerem a bola ao domingo.”

O meu amigo Carlos Ferreira, 2019, escreveu em mirandês um texto a que intitulou: “Lhienda-recente-de-la Bolha Doce Mirandesa”, e a certa altura: “Satisfeito com a sua obra prima da criação, ao sétimo dia, Deus descansou.   Enquanto repousava, Deus decidiu cozinhar a melhor das iguarias, com tantas camadas como dias durou a semana da criação: sete. … Por tempo da Quaresma, como não podem pecar, continuam a fazer uma massa parecida com a dos folares de Páscoa, mas mais leve, e entre cada uma das sete camadas, em vez de carne, poem um recheio de açúcar e canela.”, tradução livre por mim. Para nosso contentamento agora há produção diária, ou quase, de bola doce durante todo o ano, mas, façam um esforço e deem-lhe sempre 7 camadas.

 

 

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Bola doce mirandesa com 7 camadas

O outro doce que me habituei a ver com sete camadas é a famosa “Bebinca” de origem goesa. Habitualmente encontramos esta sobremesa em restaurantes indianos e por vezes apontamentos em outros restaurantes. Vários autores atribuem a sua origem ao Convento de Santa Mónica na Velha Goa. Foi naquelas paragens um doce que se confecionava para celebrações especiais, ocasiões festivas, ou em banquetes ou bufetes de cerimónia. A sua receita é preparada a partir de uma massa com gemas de ovo, açúcar, farinha (sempre em menor quantidade do que açúcar) e sumo de coco, e pode levar sal e baunilha. Depois coloca-se uma porção para ir ao forno, e cobre-se com “ghee” (manteiga clarificada), novamente uma camada de massa e depois “ghee” até fazer sete camadas. Depois enfeita-se com amêndoas em tiras. Na recente reedição do livro GOA – Sabores, Saberes e Segredos, de Maya Olívia das Angústias da Costa de Sá e Francisco Xavier Valeriano de Sá, edição dos autores, 2023, dá a receita sem mencionar as sete camadas, mas, na foto ilustrativa, veem-se bem as sete camadas. Também Maria Carma Brás Gomes Lourenço Alves no livro Cozinha Caseira Goesa, Datarroba, 2004, apresenta a receita sem menção as sete camadas, mas, a foto respetiva, tem o doce com sete camadas. Felícia Sampaio da site Roteiro Gastronómico de Portugal apresenta uma receita de “Bebinca das Sete Folhas”, com a menção expressa de: “… até as camadas perfazerem 7”. Ainda online, no site Arca dos Sabores, define esta receita como: “É um bolo com diversas camadas, 7 na sua totalidade…”. Devo confessar que quando estive em Goa comi várias Bebincas excelentes, mas sempre com sete camadas. Só encontrei com mais camadas em Lisboa! No livro The Best Goan Cooking, de Gilda Mendonsa, UBS Publishers, 1995, está uma receita de “Bibinça” mas não menciona que sejam sete camadas. Também Joyce Fernandes, no seu livro Goan Cookbook, 1990, dá uma receita de “Bebinca” sem menção do número de camadas.

 

 

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Bebinca com 9 camadas

Em Goa tentei saber mais sobre a origem da receita, e quando perguntava porque tinha sete camadas várias pessoas me disseram que seriam sete pelas saudades das sete colinas de Lisboa que as habitantes daquele convento mantinham…!

Em A Historical Dictionary of Indian Food, de K. T. Achaya, Oxford University Press, 2002, tem uma definição para Bibinca: “…é uma sobremesa com gemas de ovo, farinha, leite de coco preparado em camadas de baixo para cima que cozem sucessivamente, e depois de cozer inverte-se a forma para arrefecer.” A tradução é minha, mas faltam dois ingredientes fundamentais: o açúcar e a manteiga. Depois volta a repetir o mesmo texto na verbete “Goa”, sem nunca referir sete camadas.

No livro Cozinha do Mundo Português, de M. A. M., Livraria Tavares Martins, 1962, com a preocupação de inventariação de receituário dos territórios administrados por Portugal vamos encontrar duas receitas de Bibinca: “Bibinca de leite” e “Bibina de sete folhas de Goa”. Enquanto a primeira (de leite) é um bolo com uma massa uniforme e com leite de vaca e uma pequena parte de leite de coco, a segunda (de sete folhas de Goa) é a preparação sobre a qual me tenho debruçado. É uma bolo com sete (citado expressamente) camadas. Das mesmas autoras foi publicado um livrinho Cozinha e Doçaria do Ultramar Português, pela Agência-Geral do Ultramar, 1969, que tem uma receita de “Bibinca de Sete Folhas” que remete para Goa.

Rui Rocha, no seu livro A Viagem dos Sabores, Edições Inapa, 1998, no capítulo dos doces apresenta uma receita de “Bebinca de Sete Folhas”, de Goa, e uma receita de “Bebinca de Leite” com origem em Macau. Maria Odete Cortes Valente no livro A Cozinha Descoberta pelos Portugueses, Gradiva, 1989, tem também uma receita de “Bebinca das sete folhas”, com foto na qual se podem contar bem as sete camadas.

 

 

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Bebinca com 7 camadas

Para terminar transcrevo o que está escrito no livro Do Comer e do Falar…, de Ana Marques Pereira e Maria da Graça Pericão, Relógio de Água, 2015: “BEBINCA – Doce indiano, de receita indo-portuguesa, feito no forno em camadas (sete pelo menos), com farinha de trigo, ovos, amêndoa e leite de coco.” Até a Joana Barrios apresentou esta receita no seu famoso programa televisivo, com sete camadas, que aprendeu com a herança de familiares de Goa, que lhe deixaram as suas receitas.

O número 7 está associado a vários fenómenos ou criações cultural. Sete tem relação com a fase lunar que é múltiplo de sete x quatro, temos os 7 chacras nas cores do arco iris, é também o número das maravilhas do Mundo Antigo, os grandes sábios da Grécia Antiga são sete, até a Branca de Neve se rodeou de sete anões…! É interminável a lista de associações do número sete a religiões ou factos históricos. Eu fico satisfeito com as 7 camadas deste dois doces.

A recomendação para a “Bebinca” é a mesma que dei para a “Bola Doce Mirandesa”: para nosso contentamento façam com 7 camadas.

© Virgílio Nogueiro Gomes