CHANTILLY, ou Creme de Chantilly

O que parece um creme tão simples, tem uma história nem sempre bem contada. E é tão importante a sua utilização que, no século passado, passou a ser produzido de forma industrial e fácil de manusear, habitualmente em forma de tubo com spray. Aparentemente simples só necessita dois produtos: natas frescas e açúcar. Quanto à sua história criou-se um mito que atribui esta receita a Vatel (1631-1671), mestre de banquetes no Palácio Chantilly do Príncipe de Condé.

Investigadores contemporâneos tentam provar que o creme Chantilly teria mais de cem anos antes dos famosos banquetes servidos no Palácio de Chantilly ao Rei Luis XIV de França em abril de 1671. Pierre Leclercq em entrevista difundida pela RTBF – La Première, em 16 de setembro de 2018, é perentório a declarar que “François Vatel não é categoricamente o inventor do creme chantilly… mais tarde, em 1833, o pasteleiro Pierre Lacam é o primeiro autor a fazer a ligação entre o creme chantilly e Vatel.” Quem vir com atenção o filme “Vatel” de Roland Joffé, e com Gérard Depardieu como protagonista, quando este faz de emergência um creme chantilly, ele ainda lhe chama “natas montadas” que é o nome como era conhecido. E o creme serviu para complementar pequenos doces que também os enfeitavam.

 

chantilly3

Duchesse com chantilly e Duchesse com chantilly e fios de ovos

 

Também Nicole Garnier-Pelle, no seu livro Vatel – Les fastes de la table sous Louis XIV, da Collection Château de Chantilly, In Fine éditons, 2021, é também categórica a escrever que não foi Vatel o inventor do creme chantilly, terminando o livro com um capítulo intitulado: “Vatel n’a pas inventé la Creme Chantilly”. E vai mais longe afirmando que o século XVI foi pródigo a apresentar preparações idênticas em outros países da Europa impulsionados pela Renascença Italiana. Sugere que possivelmente uma das receitas mais antigas é publicada em Inglaterra em 1545 no livro A Proper Newe Booke of Cokerye. O título da receita é a de: “dyschefull of snowe”.

Eis a receita:

 

 

chantilly6

 

 

Curiosamente um dos biógrafos de Vatel, o escritor Dominique Michel, no excelente livro VATEL et la naissance de la gastronomie, Fayard, 2019, depois de descrever a vida de Vatel tem também um estudo sobre a alimentação depois de Vatel, e com receitas de outros autores adaptadas por Patrick Rambourg. Uma delas é o “Crème blanche légère”, de Massialot , 1715, que terá sido inspirado pelo que se chama creme chantilly. Mas, … não faz nenhuma referência à invenção do creme chantilly por Vatel.

 

chantilly4

Parra recheada com chantilly e frutos

 

Recentemente também Berry Farah, no livro Histoire inédite des pâtisseries françaises, Quebec, 2019, lança alguma confusão sobre o nascimento da receita do creme chantilly. Apesar de se agregar esta receita ao Palácio de Chantilly, e transcrevo: “… mas é falso acreditar como faz crer a lenda que foi a Vatel que se deve esta receita.”

Há outros autores anteriores a Vatel que publicaram receitas com base na natas montadas, particularmente em França, Inglaterra, Alemanha e Itália, por vezes denominada de “neve de leite”, e por vezes aromatizada com água de cheiro. Também temos referência que na receita se juntariam claras batidas em castelo para dar mais volume e outra consistência ao creme. Já Rabelais no seu livro Pantagruel refere a “neve” em 1532. Por exemplo Bartolomeo Scappi, no seu livro Opera dell'arte del cucinare, 1570, dá-nos uma receita de “lattemelle” que corresponde à denominação francesa de “crème fouettée” que depois de Vatel se vulgarizou a de nominação para “creme chantilly”. De Inglaterra vem a denominação de “To make a dyschefull of snowe” e publicada no livro A Proper Newe Booke of Cokerye, 1545, com receita idêntica. Também Lancelot de Casteau, no seu invulgar livro Ouverture de Cuisine, Liège, 1604, cita a propósito do famoso banquete da entrada do Senhor Robert de Berges, Conde de Wallhain, Evèque et Prince de Liège, 1557, uma “neige sur rosmarin”.

 

chantilly1

Babá com chantilly, o melhor doce, para mim, com chantilly

 

Joseph Favre, no extraordinário livro Dictionnaire Universel de Cuisine Pratique, 1894, tem uma entrada para “Crème fouettée” na qual afirma que esta prática já era conhecida dos Romanos e que estes lhe juntavam mel e aromáticos. No final escreveu: “Em Paris este creme é conhecido sob a denominação de “Crème à la Chantilly”. Dá depois a receita que consiste em bater as natas sobre gelo, e no momento de servir polvilhar com açúcar baunilhado.

Pierre Lacam (1836-1902) no livro Le Glacier Classique et Artistique en France et en Italie, 1893, publicou o seguinte texto na página 68:

 

chantilly5

Se alguém tiver dificuldade na tradução peçam que enviarei o texto em português

 

No Larousse gastronomique, de Prosper Montagné, 1938, tem uma entrada para “Crème Chantilly ou Crème fouettée”: “Para um litro: colocar numa tigela meio litro de natas espessas e bem frescas que se conservaram no frio 24horas. Bater estas natas até que dupliquem o seu volume. Escorrer as natas numa peneira fina. No final juntar 60 gramas de açúcar em pó e uma meia colher de açúcar baunilhado. É preferível usar, para preparar o creme Chantilly, um batedor de verga.”

Na edição portuguesa, Larousse gastronómico”, volume 1, do Círculo de Leitores, 1990, página 332, temos uma entrada para creme “chantilly” ou natas batidas, com açúcar e baunilha.

Podemos deduzir que, o que hoje chamamos de “creme de Chantilly”, será uma denominação desenvolvida a partir dos famosos banquetes servidos a Luis XIV no Palácio de Chantilly no qual VATEL operava como “maître d’hôtel” e responsável pelos banquetes. Não terá sido este que inventou a receita, mas lhe deu notoriedade. A receita base será do “crème fouettée” cuja receita estava já publicada há mais de cem anos por vários autores.

 

chantilly2

São Marcos, chantilly com gelatina e enfeite de suspiro

 

Entre nós, no livro Manual Técnico de Pastelaria, do Turismo de Portugal, 2012, apresenta a receita do “Creme de chantilly” com nata fresca e açúcar e sugere a sua aplicação no “Saint Honoré, charlottes e vacherin, entre muitos outros.” Eu sou particular consumidor ne “Babás”. Por cá o creme também serve para rechear bolos ou enfeitá-los. O creme é sempre um complemento de outros produtos.

© Virgílio Nogueiro Gomes

Todos os doces fotografados são da Pastelaria Versailles, Avenida da República 15 A, em Lisboa.