(Presuntos de Porco Bísaro)
Estávamos no tempo durante o qual eu ainda ouvia e lia muito. Ainda falava pouco. E me vi envolvido num grupo de trabalho onde estava Maria de Lourdes Modesto, Maria Emília Cancella de Abreu, Luis de Sttau Monteiro, Gentil Marques e Hélder Rodrigues entre outros. Decorria o ano de 1982 e aquele grupo reunia-se na Escola de Hotelaria e Turismo de Lisboa coordenado pelo seu director e sob a tutela do Secretário de Estado do Turismo. Os seus objectivos eram lançar as bases para a classificação da nossa gastronomia e, em simultâneo, instalar eventos e acções do melhor do nosso património culinário. Veio de França um representante do Instituto de Artes Culinárias para apoiar este projecto e indicar pistas para prosseguir. Ainda me lembro de ter sido organizado um Concurso de Gastronomia Tradicional Portuguesa, com etapas regionais conforme as grandes regiões gastronómicas ainda hoje actuais. Foi lançado também o evento com prémio para o “Melhor Artigo sobre Gastronomia Tradicional Portuguesa”. Esta edição deveria ser anual para incentivar a publicação de matérias sobre aquele tema. Atribuiu o prémio a Manuela Teresa, autora de um conjunto de três textos publicados no Correio da Manhã com os títulos: “Se não fosse a República ainda hoje não conhecíamos o segredo dos Ovos Moles”, “Receitas de bacalhau vão parar ao museu” e “Caldeirada de enguias o pão de muitos” saídos respectivamente em 28, 29 e 30 de Setembro de 1982. Os prémios dos Concursos de Gastronomia e do Melhor Artigo foram atribuídos em 1983 e não tiveram continuidade.
A deficiente estrutura deste grupo e a sua dependência governamental levaram ao seu natural desmembramento e ao seu não prosseguimento dos trabalhos. Não agonizou, pura e simplesmente deixou de existir. Entretanto eu tinha deixado Lisboa rumo ao Porto onde fiquei uns anos por razões profissionais pelo que nem assisti ao fim daqueles trabalhos. Claro que em 1982 participei nas referidas actividades em representação das Pousadas de Portugal, quando estas ainda eram uma montra das cozinhas regionais portuguesas.
As razões que, possivelmente, levaram a que eu tivesse sido o escolhido para participar naquele grupo terão a ver com a dedicação que eu já votava à investigação e identificação do nosso património culinário. Independentemente das funções que detinha no trabalho dedicava-me no tempo livre a recriar as memórias e a identificá-las no terreno. Nesse tempo ainda corria para localidades para perceber o que era, e como se confeccionava, uma determinada receita. Talvez por isso, tive a sorte de acompanhar a delegação portuguesa que participou na Europália em 1991, quando Portugal foi o país convidado. Portugal foi o primeiro país que, a par do património artístico, apresentou a sua gastronomia com presença permanente em Bruxelas e acções especiais em Gand e Antuérpia. A curiosidade sobre a nossa culinária foi tão grande que organizámos um curso de uma semana em Gand para os restaurantes locais aprenderem a confeccionar bacalhau. Outra curiosidade de que me lembro bem foi a prática de duas receitas que julgamos não ser apreciada por estrangeiros que foram a “açorda de mariscos” e “pezinhos de porco de coentrada”.
Outra grande iniciativa das cozinhas regionais portuguesas foi o Pavilhão de Portugal da Expo 98, com um programa muito cuidado que, para além de, semanalmente a lista do restaurante variar de acordo com cada região de Portugal, haver ainda semanas das cozinhas de reencontro de Portugal com o Mundo e suas influências, que geraram as constatações de cozinha de fusão desde o século XVI. Para além deste programa, todas as refeições oficiais de acolhimento das personalidades que visitavam a Expo nos seus dias dedicados foram exclusivamente com cozinha portuguesa, e por lá passaram muitos Chefes de Estado. Claro que nestes dois grandes eventos houve uma força determinante para a sua imposição - a gastronomia como cultura – a de Simonetta Luz Afonso.
Por esta altura já andava instalado outro grupo de trabalho, ao qual pertenci, com o objectivo específico da classificação da gastronomia como Património Cultural. Esta questão parece uma evidência. Uma total aceitação por todos os parceiros. Mas como se transpõe esta constatação para uma forma de registo e “oficialização”? Como se “legaliza” e se cria a continuação destes registos? O património construído tem regras e facilidades que não poderiam ser copiadas para este processo. O registo de bens imateriais é mais complexo. A música tem as partituras, para mim a cozinha tem as receitas. A qualidade do intérprete é que lhes dá mais valor ou reconhecimento. As questões da mesa só recentemente são objecto de estudo. Quando se abordavam as questões históricas da alimentação ficava-se muitas vezes pelos relatos de refeições palacianas, que não reflectiam a alimentação das grandes massas. Por isso, é importante agora efectuar esse registo que criou e caracterizou as nossas diferentes cozinhas regionais. Esse registo não significa uma regra de permanência. A cozinha é uma actividade dinâmica e em evolução permanente. Portanto, o registo não obriga as cozinhas a estacionarem…
Arrastavam-se o desejo e vontade séria de classificar a nossa gastronomia. Finalmente, e pela perseverança de Vitor Cabrita Neto, Secretário de Estado do Turismo, e com todas as aventuras de decisões e não decisões de políticos, pela Resolução de Conselho de Ministros nº 96/2000 de 7 de Julho de 2000, publicada no Diário da República, I Série-B, nº 171 de 26 de Julho a gastronomia nacional foi consagrada como “parte integrante do património cultural português”. Na nota de apoio lia-se que “entendendo-se como necessária a intensificação das medidas de prevenção, valorização e divulgação do receituário tradicional português, assente, designadamente, em matérias-primas de fauna e flora utilizadas ao nível nacional, regional e local, bem como em produtos agro-alimentares produzidos em Portugal.” Todos aplaudimos. Mas 10 anos depois, o que podemos aplaudir?
Mais tarde, em 19 de Dezembro de 2001, é publicada a Resolução do Conselho de Ministros nº 169/ 2001, que cria a Comissão Nacional de Gastronomia cujas funções seriam o levantamento e qualificação do património gastronómico português. Esta Comissão era constituída por quase três dezenas de representantes o que a tornava de difícil gestão, uma assembleia grande demais para discutir as questões e quantas vezes sessões intermináveis que obrigavam a votações e muitas vezes os próprios representantes não se achavam mandatados para votar as decisões propostas. É nesta altura que foi criada a Federação das Confrarias pela necessidade de estas estarem representadas. Para além da Comissão, havia um Conselho Executivo constituído por sete elementos cuja função seria gerir as questões associadas à Comissão. Ainda um Conselho Técnico com nove elementos ligados à área de gastronomia que deveriam identificar o receituário a qualificar e pronunciar-se sobre todas as questões que a Comissão lhe apresentasse sobre a área gastronómica. O que correu mal? Possivelmente a dimensão dos seus órgãos e a ausência de uma pequena estrutura de apoio. Mesmo assim os órgãos da Comissão foram inicialmente obrigados a redigir os seus regulamentos de funcionamento. Depois foram elaborados Regulamentos para concursos que deveriam servir de base para todos os concursos apoiados pelas autoridades de turismo. Mais complexo foi o desenho da base de dados para o lançamento do Site oficial. O Conselho Técnico ainda identificou as primeiras vinte e seis receitas de cozinha que deveriam ser qualificadas… Mas, ironia destes projectos que não constroem pontes nem auto-estradas, apesar de o trabalho ser complexo essencialmente pelo peso, leia-se dimensão, dos seus órgãos lá se consolidou o trabalho de base. Parecia que se iria entrar em período de grande produção. Enquanto foi Secretário de Estado do Turismo Victor Cabrita Neto, grande impulsionador do projecto, acreditávamos na sua continuidade. Eleições e consequente paragem, expectativas goradas. É empossado Secretário de Estado do Turismo Pedro de Almeida que apoiou a Comissão e conseguiu a realização do primeiro Concurso Nacional sob a sua tutela. Solicitou que, de acordo com todos os objectivos da Comissão, que eram vastíssimos, se fizesse uma listagem de acções prioritárias de intervenção. Pouco tempo após se iniciarem estas diligências, sai Pedro de Almeida. O seu sucessor pura e simplesmente ignorou a Comissão, ou os seus objectivos.
Em 15 de Dezembro de 2003, o Conselho Executivo elaborou um documento no qual propunha uma nova orgânica para os órgãos da Comissão Nacional de Gastronomia e que permitiriam agilizar as funções que lhes eram atribuídas. Reduzia seriamente o número de elementos que constituíam o Conselho Executivo e o Conselho Técnico. Com a mudança de Governo renovaram-se as expectativas e em particular quando o Secretário de Estado do Turismo, Bernardo Trindade, em discurso proferido no dia 14 de Outubro de 2005, afirmou: “reitero e congratulo o passo que foi dado na Resolução de Conselho de Ministros nº 96/2000 de 26 de Julho”. Mais à frente, afirma: “É indiscutível que pretendo continuar este trabalho, quero aliás descansar o senhor Presidente da Região de Turismo do Ribatejo, quando há pouco se referia à necessidade de reactivar a Comissão Nacional de Gastronomia, devo dizer que partilho da mesma preocupação, pelas razões que anteriormente aduzi.” Evidente que era necessário reestruturar a Comissão para agilizar as suas funções. O que aconteceu a seguir? Extinção da Comissão e não veio o PENT a absorver em nada as suas funções, nem articular com a cultura, estas questões.
Quando a Resolução de Conselho de Ministros classificou a gastronomia como património cultural, e que envolveu os Ministérios da Economia, Cultura e Agricultura, pretendia que se procedesse aos registos dos produtos e do receituário que constituem esse património.
É indiscutível, a todos os níveis, que as tradições alimentares são questões culturais. “A simbologia da mesa é tão importante numa comunidade de aborígenes como num liceu em Nova Iorque. É transversal a todas as culturas e tempos”, como escreveu Tolentino Mendonça. É indiscutível que as referências gastronómicas são vínculos culturais. “…o alimento testemunha a evolução de povos ou nações e a própria história da humanidade”, conforme opinião expressa por Francisco Nilton Castro.
Como se passa para o futuro esquecendo o passado e o presente?
© Virgílio Nogueiro Gomes