É curioso ver como aceitamos muitas inovações e tão inconscientemente reprovamos outras. O Natal, e festejos associados, têm sido uma época de verdadeira revolução de espírito e tradições.
Não sou tão velho, ainda, que deva lamuriar-me dos tempos passados. Mas lembro-me bem que o Natal, festividade de marca fortemente religiosa, era também, e essencialmente, a festa da Família, o regressar a Casa e o encontro de Amigos. Era um período tranquilo, ausência de gente nas ruas dia 24, excepto os movimentos para a Missa do Galo, e dia 25 as deslocações entre Famílias visitando-se uns aos outros. Não só no Natal mas este hábito regular de visitar a casa dos nossos parentes ou amigos está em perca continuada.
Mas voltemos às tradições de Natal. Se apenas guardámos o jantar de Consoada com o Bacalhau cozido, do longo período de jejum que a Igreja impunha, rapidamente aceitámos a Peru que substituiu o famoso, e possivelmente mais saboroso, Capão de que Freamunde continua a manter como bandeira de qualidade gastronómica. O Peru é um produto recente que absorvemos com muita aceitação. Porque não se manteve a tradição imposta por vários gerações do peixe? Porque aceitámos tão bem o peru no lugar do capão? As respostas seriam longas…!
Ainda miúdo, e a viver na gloriosa província, tínhamos vários rituais associados à celebração do Natal. Um dos mais divertidos, e que só mais tarde entendi, era “embebedar” o peru. Este era alimentado com farelo e ortigas migadas e no dia da matança forçado a beber várias doses de aguardente intervaladas com nozes inteiras que também à força lhe eram introduzidas na boca, fechando-lhe o bico, e que ele era obrigado a engolir inteiras. Depois o espectáculo da pequenada que era assistir aos passos trôpegos e cambaleantes do bicho. A morte só acontecia quando se pensava estar devidamente “anestesiado”.
Quando refiro este trágico percurso para os prazeres da mesa, não pretendo incentivar a manutenção desta tradição, talvez muito localizada. Mas tem a ver com a evolução e a alteração de tradições e, neste caso, do abandono do nosso capão castrado ou eunuco como recentemente o Duarte Calvão o referenciou. De repente, talvez cinquenta ou cem anos, mudámos os hábitos. Claro que as mudanças enfrentam sempre resistências. Não quero mais citar o abandono do peixe, a que a Igreja nos obrigava, tendo ficado na História o famoso banquete que D. Sebastião ofereceu a seu tio, e Rei de Castela, no qual a grande surpresa foi a ementa constituída por peixe em cerca de uma trintena de variedades. Filipe II surpreendido elogiou o repasto dizendo: “Mi Sobriño es el Señor de los Mares”. Se calhar o tio já pensava em herdar esses mares...!
Outro elemento que entrou rápido nas nossas tradições foi a batata. Ninguém hoje imagina o bacalhau sem estar associado na confecção ou acompanhamento, sem a batata. Até os ingénuos Pasteis ou Bolinhos de bacalhau que parece terem sempre sido componente dos nossos cardápios.
Obviamente que naqueles tempos os endinheirados comeriam já carne abundantemente com a dispensa obtido com o pagamento de bulas.
Há uma tradição que se mantém desde tempos medievais: a abastança de doces, inicialmente pouco doces e pouco variados, que depois do estabelecimento dos engenhos de açúcar no Brasil (1532), e a chegado de açúcar em quantidade a Portugal, se desenvolveu uma prática de criatividade que levou a sermos um exemplo de “virtude” gastronómica para o novo mundo. Portugal e a glória dos doces.
Se atendermos também neste capítulo, verificamos a facilidade com que absorvemos o Bolo-Rei aparecido só em meados do século XIX, e hoje não se imagina esta época sem este famoso bolo. Certo que ele aparece num século de grandes mudanças na sociedade, as mentalidades em evolução, e o patrocínio régio muito terá influenciado ao seu consumo. Depois já apareceu o Bolo-Rainha (apenas com frutos secos) e o Bolo “esfrangalhado”, “escangalhado” e não sei quantos mais derivados.
Na realidade o Natal, no século XXI, continua a ser uma festa de aproximação das famílias mas é sobretudo a festa do comércio. Parece que os desejos de Boas Festas fazem esquecer os males acontecidos e tantas vezes provocados. As ruas iluminadas são as ruas comerciais.
Regressemos às tradições da mesa. Hoje com a globalização galopante estamos presentes ao aparecimento de novos produtos, quer dizer a presença de alimentos que tinham a sua época própria. Quando tinham o seu melhor sabor. Tristes morangos que nos pretendem servir logo acompanhados de açúcar o que significa que não são doces...
A tradição do melão que aguentava até ao Ano Novo que se mantenha. E as uvas passas, e a pêra passa também.
E os vinhos bons também. Tradicionalmente não escrevo sobre vinhos. Estou com a postura radical de cliente que é para quem se destinam os vinhos. No entanto a escrita sobre vinhos tornou-se tão elitista que eu próprio deixei de ler crónicas, críticas ou informações especializadas sobre vinho. A minha posição é muito radical. Provo um vinho, se me sabe bem, continuo a beber. Fui educado a aprender a beber vinho mas sempre com a máxima de que o vinho não serve para matar a sede. A sua função é ajudar a melhor o prazer da mesa e quantas vezes ajudar e reagir melhor à comida. E este texto para chegar à sugestão de um livro delicioso sobre o vinho. Melhor, como entender melhor o vinho com uma linguagem para o grande público, descomplicando os manuais de escrita difícil. Quero referir-me a “112 Conselhos para Perceber de Vinho” da autoria de Maria João de Almeida. Ilustre cronista de vinhos e reconhecida provadora e crítica, por quem me habituei a ter estima e admiração, escreveu este delicioso livro com um título bem elucidativo dos seus propósitos. 112 é o número de emergência médica, é também, através deste livro a emergência para resposta a tantas questões sobre o vinho. Só um grande conhecedor e inteligente consegue passar de uma escrita especializada para uma linguagem simples e para entendimento de todos. Este livro fez-me lembrar outro com o título “Não entendo nada de vinho, mas sei do que gosto”, de Simon Woods, escrito também para o grande público que é a grande massa consumidora de vinho.
A propósito de livros, e esta época é delirante em relação aos títulos publicados, que parece que alguns editores não estão preocupados com os conteúdos mas as capas pré natal, surgiu outro que merece os meus aplausos. “Palavras do Olival”, de António Monteiro, é o melhor léxico, dicionário, tira dúvidas e dá ensinamentos sobre todas as questões do olival, da oliveira, da azeitona e do azeite. Ainda mais, envolve-nos em todas as questões culturais associadas àqueles termos e sobretudo acerca do azeite que é um dos produtos de que os portugueses se devem orgulhar e retomar em força o seu consumo. É portanto outro livro escrito em linguagem simples, própria de gente intelectualmente superior, que sendo especialista sabe dirigir-se ao grande público.
Nesta época que acaba o ano 2008 surgiu um excelente trabalho editado em DVD. Trata-se de uma recolha fundamentada, e agora registada em “Os Gestos dos Sabores”. Fruto de vários anos de estudo conseguiram produzir este filme, doce, delicioso e importante para o futuro. Uma tentativa de não deixar perder algumas tradições. Porque os sabores também têm gestos. Da mesma forma que uma partitura tem várias interpretações também estas tradições atingem a mais alta confecção de acordo com o seu interprete, a sua doceira, o seu executor. Neste trabalho vamos encontrar os gestos de João Dias e as sua “Peras Passa”, Maria de Lurdes Gomes Diegues uma das últimas artistas de “Cuscus”, Francisco Matias Paulo e a reconstituição da receita de “Vila de Amêijoas”, Maria Fernanda Bispo com o “Cabrito Estornado”, Maria Catarina Murcho e os seus “Doces de Ovos” do Alentejo, Margarida Gomes especialista em “Bucho”, Maria Odete Farinha com “Maranhos”, Belmira do Carmo Branquinho com os surpreendentes “Lagartos” de Castelo de Vide, Maria Leonor Rodrigues e Maria Manuela Máximo com os saberes de “Pão-de-ló”, e Maria Antónia Aguiar com os “Bolos de Cabeça”. Como qualquer artista de cinema eis os artistas artesãos que permitiram registar os gestos que fazem a diferença. Apetece-me chamar-lhes poetas das artes culinárias. Com toda a justiça, e o aplauso que merecem, os mentores deste projecto são as ilustríssimas e grandes conhecedoras das tradições alimentares portuguesas: Maria de Lourdes Modesto, e Maria Proença, que no âmbito das actividades da associação cultural “As Idades dos Sabores”realizaram este trabalho.
Já agora, quando começaremos a ver dióspiros nos restaurantes, ou marmelos aproveitados sem ser em marmelada?
Aprendamos nós consumidores, e os empresários da restauração, a conservar o que há de melhor nas nossas tradições.
BOM ANO de 2009
BOM APETITE
© Virgílio Nogueiro Gomes
Foto © Adriana Freire