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Celebra-se no decurso de 2008 o Ano Mundial da Batata. Celebrar não será, porventura, o termo mais adequado: este ano deveria ser marcado para o melhor entendimento da batata, do valor deste produto e da sua facilidade de preparação. Apesar da sua entrada tardia nos hábitos dos portugueses, hoje eles não passam sem este famoso tubérculo, que se tornou flexível e polivalente.

Porque será que a FAO terá destinado este ano à batata? Haverá necessidades mundiais que levem a sugerir o aumento da sua produção e do seu consumo? Estamos perante o risco de grandes alterações dos cereais tradicionais e que ainda são elementos estruturantes da alimentação? Em Portugal sempre foi o pão de trigo, de mistura, de centeio e de milho, um elemento fundamental do povo, e os maus anos agrícolas estão identificados com os períodos de fome.

Em Portugal a batata aparece tardiamente, sendo em 1760 o ano provável da sua introdução. Só no reinado de D. Maria I, em 1798, é que foi publicada uma portaria de incentivo ao seu cultivo no arquipélago dos Açores. E é neste mesmo ano que a primeira grande produtora de batata, D. Teresa de Sousa Maciel, é premiada com a medalha de ouro da Academia de Ciências de Lisboa. O seu filho, primeiro Visconde de Vilarinho de S. Romão, gastrónomo e homem erudito, também é um grande impulsionador do cultivo da batata, publicando “Manual Prático da Cultura das Batatas” e, ainda em 1841, o livro “Arte do Cozinheiro, e do Copeiro”. Curioso é notar que o segundo livro de receitas publicado em Portugal, em 1780, de Lucas Rigaud já tem uma referência breve à batata: “As batatas depois de cozidas em água e peladas comem-se com molho de manteiga e mostarda; mas as batatas das Ilhas servem comummente para doce de diferentes qualidades.” Ora Lucas Rigaud já tinha trabalhado na corte francesa onde a batata tinha chegado mais cedo. De notar já a existência de batata-doce, que sempre teve mais utilização nas Ilhas do que no Continente.

Assim, o consumo generalizado da batata parece confirmar-se durante o século XIX. Mas a batata marcará definitivamente alguma cozinha regional que permanece nos nossos tempos. Agora parece inimaginável cozinhar bacalhau sem batatas. Receitas gloriosas como o Bacalhau à Gomes de Sá, à Brás ou simplesmente Pastéis ou Bolinhos de Bacalhau não se julgam receitas tão recentes, tal o costume estar instalado e tão vulgarizado. O bacalhau parece nunca ter existido sem a batata, dada a perfeita ligação que os une.

Até ao aparecimento da batata, os portugueses tinham como complemento e acompanhamento das refeições o pão. O arroz adquiriu dimensão durante o reinado de D. Dinis que incentivou o seu cultivo junto ao Mondego. Mas a batata nunca destronou o arroz. A vítima da moda da batata foi a castanha. A castanha, que hoje apenas imaginamos como diversão alimentar de Inverno, constituía um elemento importantíssimo nas regiões do interior. As sopas, e tantas sopas completas, quer dizer que substituíam uma refeição, eram engrossadas com castanha. A partir da castanha também se fazia uma farinha que dava origem a uma espécie de pão que se chamava falacha, e que deu o nome a algumas feiras. Hoje, a castanha subiu ao pódio da doçaria francesa com os seus famosos “Marrons Glacés”. Entre nós surgem verdadeiras novas receitas. A falsa tentativa de recriar as receitas antigas não passa de um oportunismo mediático pois não havia um receituário. A castanha era elemento para engrossar as sopas, fazia-se em puré e, em períodos de crise, dela se fazia farinha para uma espécie de pão. Depois, as castanhas assadas ou cozidas que ainda se mantêm.

Mas voltemos às batatas. Na sequência do Tratado de Tordesilhas, as batatas chegaram, naturalmente, primeiro a Espanha, e só posteriormente a Portugal. Aquela partilha do Mundo levou a que os espanhóis “herdassem” para colonização os territórios onde já se produzia a batata, territórios que representam agora o Perú, o Equador, a Bolívia, o Chile e a Argentina. E com as batatas criaram logo receitas que se popularizaram como a “Tortilha” ou a simplicidade das “Batatas Bravas”. Os ingleses reclamam terem sido eles a divulgar a batata à Europa depois de uma viagem do descobridor Sir Francis Drake e que a apresentou à Rainha Isabel I. Em França, chegou a ser proibida e apenas após o esforço de Parmentier, farmacêutico, junto dos Reis Luis XVI e Maria Antonieta que, inicialmente, usaram a flor como elemento decorativo, e só depois é que foram convencidos de que a batata ajudaria a França a livrar-se da fome. Passou por várias vicissitudes: uns diziam que provocava a lepra, outros que era veneno puro e outros ainda a apelidavam de planta do Diabo por não ser mencionada na Bíblia. A Enciclopédia Britânica, na sua primeira edição 1768-1771, considerava a batata como um alimento desmoralizador.

Avançou com cuidado e hoje é o quarto alimento mais cultivado do mundo, depois do arroz, do trigo e do milho. A China é o seu maior produtor. Recebeu classificações poéticas como “...acolhedora, cadeira de balanço, colo de avô, carinho de mãe, presença do pai...”, conforme relato da jornalista carioca Danusia Barbara.

Do Perú chegam-nos informações de centenas de qualidades de batata que alguns reputados chefes de cozinha têm trabalhado e criando receitas extraordinárias. Do Perú ainda temos conhecimento de batatas que são desidratadas por secagem a frio a 4.000 metros de altitude. Claro que se tratava de uma forma de conservação simples e que para sua reutilização bastaria deixá-las mergulhadas em água. Recentemente tive a oportunidade de participar num almoço, patrocinado por Sua Excelência a Embaixadora do Perú, e durante o qual foi servido num bufete Entradas, Pratos de Carne, Guarnições, Molhos e Sobremesas. Surpreendente a flexibilidade e versatilidade da batata. Para mim, a surpresa maior foram duas sobremesas: “Crema Asada de Papas a la Moda de Abancay” e “Trufas de Papas como se Hacen en Ancash”. Esta última, igual no exterior a qualquer trufa de chocolate, tinha no seu recheio um creme achocolatado tão leve que ninguém diria que tinha sido executado com batata. Eis, pois, a batata no seu melhor! De lembrar que as batatas se chamam no Perú: Papas.

Grandes chefes como Joel Robuchon criaram um novo receituário, e a batata readquire o seu lugar de privilégio. Dedica-lhe um livro intitulado “Le Meilleur e Le Plus Simple de la Pomme de Terre” no qual apresenta cem receitas (incluindo o seu famoso puré), o historial da chegada à Europa e muitas informações úteis.

Entre nós, a batata também nos aparece na gíria popular:

-         Mandar cavar batatas

-         Batata quente

-         Morder a batata

-         Na batata

 

BOM APETITE!

© Virgílio Gomes

Foto: Adriana Freire