Cabo Verde ou Cozinha no Feminino
Há cerca de dois anos fui convidado pela Câmara Municipal de Odivelas para participar num encontro de comunidades. Claro que eu deveria fazer uma palestra no âmbito de encontro de culturas e sua incidência na gastronomia. Quase de véspera foi-me sugerido falar, especificamente, sobre as partidas para Cabo Verde, tendo de imediato perguntado ao meu interlocutor se ele estaria doido. Uma coisa é falar da relação entre duas grandes regiões, dois países que era Portugal e Cabo Verde, ou é uma pequena região, Trás-os-Montes e um País, Cabo Verde. Pouco contente lá aceitei o desafio, acreditando que a sorte me iria proteger.
Um pouco assustado lá fui procurar as minhas ajudas de memória para encontrar os elementos de ligação gastronómica, ou de cruzamento de culturas na área alimentar. Apesar de já ter estado algumas vezes em Cabo Verde, não me foi fácil buscar as lembranças. Recordava mais rapidamente o acolhimento, e a comida simples e espontânea que me foi servida. E as melhores refeições foram, naquele tempo, as servidas ou partilhadas em casa de particulares que, por vezes, tinha conhecido na hora. Tive sempre o cuidado de querer saber quem cozinhava e de agradecer a confecção. Tive conversas deliciosas com mulheres para quem fazer comida era quase uma necessidade vital, como respirar. E quanto mais simples, melhores. Vinha-me portanto essa atitude como mais evidente, de melhor memória, do que os pratos que comi. E encontrei aqui uma expressão que muito se usava em Trás-os-Montes quando partilhávamos a mesa com convidados. Era obrigatório repetir a iguaria principal. E quando recusávamos vinha imediatamente a pergunta fatal: Não gostou? Dizer a verdade, gostando, obrigava a sermos servidos novamente. E lá comíamos. Esta hospitalidade à mesa era tão semelhante…! E dura, pois teríamos que honrar a mesa e as suas iguarias, e em especial os anfitriões.
Mas voltando ao cruzamento das cozinhas Portuguesa e Cabo-verdiana vou reportar-me primeiro ao livro mais interessante sobre este assunto. Trata-se de “A Viagem dos Sabores” de Rui Rocha e publicado pelas Edições Inapa por ocasião da EXPO 98. Nesse livro o texto introdutório é fundamental para estes entendimentos. Então, aí, o autor apresenta três elementos, ou melhor, três receitas do património de Cabo Verde: Xerém com Leite de Coco, Cuscuz e Cachupa Rica, como referências evidentes da cozinha de fusão.
Se em relação à primeira receita parece não haver dúvidas pois o Xerém continua a confeccionar-se, especialmente no Algarve, o milho contínua em todo o País a ser utilizado como elemento para a fabricação de pão.
Quanto ao Cuscuz, que nos foi deixado pela ocupação moura, apenas continua a sua confecção na região de Trás-os-Montes. No entanto pareceria mais lógico que tivessem sido os magrebinos que descendo do Norte de África os tivessem transmitido a Cabo Verde. Pensaremos pois que a Costa Atlântica de África foi dominada pelos Portugueses e as suas conquistas por via marítima.
Mas porquê esta relação geograficamente pouco fácil? Segundo o meu amigo António Monteiro, e em recente trabalho publicado sobre o assunto refere que “agora traçar-lhe uma rota histórica, do Norte de África até às Terras Frias Transmontanas, isso é que não tem sido nada fácil!”. E remeto os meus leitores para o trabalho de António Monteiro, com o título “Cuscos em Vinhais, O exotismo de um manjar enjeitado”, publicado na revista bebes.comes. Esta iguaria é ainda reconhecida no Brasil como oriunda de Cabo Verde e identificada com as comunidades de Cabo Verde, e fixadas no Brasil.
Quanto à Cachupa, alguns autores têm tendência a encontrar-lhe algum paralelismo com o nosso Cozido. Só pela variedade de ingredientes. A Cachupa tem uma parte da confecção que começa pelo refogado da galinha, e depois o envolvimento dos milhos, grão e feijões nesse molho. Como já referi noutros textos a cozinha de fusão faz o encontro de produtos e ou técnicas culinárias e, por vezes, criam verdadeiras e exultantes novas receitas.
Voltando ao início do texto, tive a sorte de partilhar a mesa com a grande autora do livro “Cozinha de Cabo Verde”, Dona Maria de Lourdes Chantre, que também fez uma comunicação. Lendo atentamente o seu livro, que não tem só receitas, assistimos ao apresentar de tradições locais que nos permitem identificar a sua cozinha nacional. Mas encontramos muito mais que aquelas três receitas e apresentação dos produtos com as designações locais.
Encontramos muitas canjas além da de galinha, também de atum, de borracho, de cabrito e de lapas. Caldos de peixe muito idênticos aos nossos caldos e sopas. Várias receitas de Cuscuz e tantas outras de Xerém. Relativamente aos guisados parecem iguais aos nossos, com a adição de ingredientes locais. Quando observamos o Guisado de Capado com Ervilhas Verdes, poderíamos certamente imaginá-lo igual no Douro Litoral, apenas substituindo o capão por um cabrito capado.
Curiosa neste livro é a apresentação nas receitas dos termos locais. Assim Azeite Doce significa azeite de oliva, isto porque antes do aparecimento do nosso azeite já conheciam outros óleos. Batata inglesa que é a batata comum. Caldeira, panela de ferro de três pés, e muitos outros termos. Esta edição dos anos 80, excelente inventário de receitas e tradições, é enriquecida culturalmente com excertos de autores locais para ilustrar os produtos, as receitas e outros hábitos. Ainda a listagem de receitas a executar de acordo com o calendário de festividades.
Recentemente, e com o apoio do Ministério da Cultura de Cabo Verde, foi publicado em edição da autora, Josefina Benchimol Duarte, um livro actual com o título “Cozinha da Avó”, com receitas e alguns textos relacionados com a confecção de algum receituário, e pequenos textos em crioulo que li em volta alta para conseguir entender.
Tenho conhecimento de mais outro livro publicado em português da autoria de Maria Teresa Lyon de Castro. No entanto fui mais longe nos dois primeiros livros pois as autoras são naturais de Cabo Verde.
Como vai sendo meu hábito, ultrapasso o tempo estabelecido, e a conversa foi alargada à mesa e já não falávamos do encontro de culturas, cozinhando, nem da cozinha de fusão descoberta. Na mesa estava outra grande Senhora da cozinha portuguesa, e da sua cultura, Maria Proença por quem aprendi a ter estima e admiração. Caso para dizer que estava bem rodeado. Por isso, ou especialmente por convicção, ousei afirmar que a cozinha na versão de grande alimentação familiar é uma actividade feminina, ou foi.
Ora atendamos á seguinte cronologia: inicialmente, pelo aparecimento do fogo, terão sido os homens que assavam, ou grelhavam, directamente a carne no fogo. Com os utensílios de cozedura e a organização familiar a cozinha passou a ser uma actividade de mulheres. E assim se desenvolveu, satisfazendo as necessidades familiares, mas evoluindo e criando novos prazeres á mesa. Em simultâneo podemos confirmar três tipos de cozinha exclusivamente destinados aos homens e por eles confeccionada: os pastores, os pescadores e os soldados em campanha. Destes três grupos identificamos facilmente um receituário, simples e fruto das circunstâncias. Se o gaspacho à alentejana é uma receita simples, o borrego do pastor já é uma receita mais elaborada. Depois mais tarde aparece-nos também o bacalhau ou polvo à mestre lagareiro, por força da profissão. No entanto a grande variedade de receitas de caldeiradas é um bom exemplo da actividade dos pescadores. Claro que depois das descobertas e com as grandes viagens marítimas desenvolveu-se outro tipo de cozinha mais programada. Mas estão ainda na História as grandes dificuldades que as grandes viagens marítimas provocavam. Não era fácil a alimentação de grandes viagens. Basta relermos os relatos, relativamente recentes, agora presentes em várias publicações, da viagem da Corte Portuguesa para o Brasil no início do século XIX.
Mas a consciência de que a actividade culinária era feminina está bem patente no princípio do século XX, bastando ler o prefácio de Carlos Bento da Maia, escrito em 1903, para o seu livro Tratado de Cozinha e Copa onde se queixa da falta de escolas profissionais de cozinha e portanto o seu livro seria um bom contributo para as alunas dos asilos aprenderem a ser boas cozinheiras, dando boas criadas.
Claro que o século XX criou uma nova dinâmica nestes conceitos. Enquanto uma pequena maioria podia ter refeições fora de casa no início no século, no final apenas uma minoria toma as refeições em casa. A estrutura familiar desagregou-se com as exigências modernas.
Sem dúvida que o património culinário português muito deve ás mulheres que desenvolveram e aperfeiçoaram o que hoje tanto se suspira por uma cozinha caseira. Com graça, Luis Baena, ilustre Chefe, escreveu recentemente que quem “quer comida caseira deve comer em casa”. Quando se vai a um restaurante pretende-se uma cozinha espectáculo, algo diferente, que estabeleça uma verdadeira relação de preço/prazer.
Bom Apetite!
© Virgílio Gomes
Foto: © Adriana Freire