Título: Açordas, Migas e Conversas
Autor: A. M. Galopim de Carvalho
Editora: Âncora Editora
ISBN: 9789727806522
Lembro-me de ler o seu livro “O Cheiro da Madeira”, 1993, e ficar entusiasmado com a sua forma de escrita e com as emoções que dedica à necessidade do comer e, como sente, de forma poética ao que chama de simplicidade no ato de comer. A simplicidade na sua escrita e no sentido memorialista das descrições transformam o autor num exemplo de autenticidade. Nas suas próprias palavras Exercício de memória, sem a preocupação da pesquisa exaustiva e o cuidado do relato objectivo do cronista.... É assim que começa o livro citado. Essa memória registada nos tempos que correm é de um detalhe invulgar, um sentimento saudável da lembrança. Melhor ainda, lemos prosa a sentir que estamos a ler poesia. A partir desse ano passei a ler, não por disciplina, mas por prazer todas as suas obras.
Dois anos depois surge novo livro: “O Preço da Borrega”, sob a forma de um romance em ficção, o mesmo tipo de emoções de escrita fixando em permanência os atos do quotidiano e descrições que remetem para outro tempo, mas refletindo, seguramente, as vivências do autor não esquecendo os detalhes de nos remetem para o dia-a-dia onde a mesa e o comer também marcam o tempo. Mas é em 2001 que surge uma obra, já emblemática, “...com Poejos e outras ervas”, que qualquer estudioso destas coisas da alimentação e tradições regionais é obrigado a conhecer. A nossa amiga comum Maria de Lourdes Modesto escreveu no respetivo prefácio: Se ouso escrever uma linhas num livro seu e que, à primeira vista, pelo título, pode parecer tratar-se apenas de mais um livro de cozinha, mas que na realidade é ainda um livro de ciências naturais e humanas, ...é ainda um livro das suas lembranças, de sensibilidades, que ele sabe, confundirem-se com as minhas próprias...está nele retratada uma parte autêntica, linda e também a mais perfumada de todo o País: o Alentejo das ervas aromáticas, reveladoras dos seus mais remotos antepassados e que do respeito pela sua memória o alentejano construiu aquilo que todos aceitamos como uma verdade indesmentível – ser a cozinha alentejana a mais original das cozinhas regionais portuguesas.
O autor, cientista de méritos bem conhecidos, tem o condão de escrever de forma fácil e de bom entendimento que agradaria ao sentido de democratização da cultura preconizada por André Malraux. Como poderia encaixar-se como príncipe da Renascença pela abrangência do seu conhecimento e a preocupação do ensinamento. Sim, porque nestes textos que o autor apelida de simples, estão carregados de ensinamento de alguém que é muito rico em conhecimento, e que gosta de o partilhar.
Este livro, “Açordas, Migas e Conversa”, do qual já temos a promessa de outro de continuação, é a consequência de seleção de texto já editados e que felizmente se encontram aqui ordenados. Recomendo vivamente o seu texto “Introdução” para melhor entendimento do livro. Este texto é uma espécie de autorretrato literário, ou a função da sua escrita. A sabedoria contida nas suas memórias. E deixa-nos um sentido, a desparecer na nossa sociedade atual, da função da alimentação como ato convivial no qual se desenvolvem conversas durante as quais muito se aprende.
Apesar de não ter a preocupação de ensinar a cozinhar, vamos encontrar um conjunto de receituário com detalhes que muitos renomados chefes deveriam apresentar quando publicam receitas. Não tendo uma preocupação da técnica culinária, os preceitos de rigor estão lá como por exemplo: nos meus cozinhados, a salsa é quase sempre utilizada em cru, onde o seu sabor é devidamente sentido e apreciado. Ou ainda naquelas em que, tradicionalmente se pisam os coentros e os alhos no gral (almofariz), prefiro batê-los em azeite no copo com a varinha ou no liquificador, com a vantagem de lhes intensificar os respetivos aromas. Por estes dois pequenos detalhes o livro merece que também seja o seu livro de cozinha e verifique como isso se reflete positivamente no seu dia-a-dia em termos de alegria à mesa. Ora é esse sentido de prazer da Vida que o autor mais me fascina pela sua escrita. E o livro começa com a glorificação do pão nosso de cada dia, alimento de base que continua estruturante na nossa alimentação. Depois a lista comentada das suas ervas fundamentais: o coentro, o poejo, a hortelã, a hortelã-da-ribeira, a salsa, o orégão e o louro. Ensinamento que fazem tanta falta em alguns modernistas com poucos conhecimentos. O autor surpreende-nos com a sequência dos textos do livro, com uma espécie de alívio da falsa rotina quando deparamos com o seguinte texto: “Gostar e não gostar ou entender e não entender arte moderna” possivelmente para nos relembrar da evolução, também por vezes sem gostar ou sem entender as modernices de alguma alimentação.
E vem o desenrolar das Açordas ou Sopas de Pão, Ensopado de Borrego, Migas e termina com uma Mioleira. Certo que tem as receitas que chama de simples, mas quem me deram que muitos chefes as confecionassem! Ler estas receitas não é um exercício cansativo pois são “entremeadas” com conselhos, memórias e a função convivial que provocam. Confesso que quando recebi o texto li-o de uma vez só até ao final. Apenas parava para, com o meu lápis, ir sublinhando algumas frases. Ler este livro, que também pode ser um livro de cozinha, é conseguir imaginar os ambientes que o autor nos propõe, quase a sentir os cheiros. Deveria ser um livro de leitura obrigatória nas escolas, de, sobretudo no Alentejo! Este correr da escrita com tantos ensinamentos já são raros, como é rara a capacidade de memória e transmissão do conhecimento do Ilustre Professor Galopim de Carvalho.
Parabéns por esta obra de grande valor. Que venha depressa a próximo!
© Virgílio Nogueiro Gomes