Queijo Coalho e Raimundo do Queijo

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Impossível falar de Ceará sem uma referência ao queijo de coalho. Tem um sabor que remete às velhas fazendas de gado, embrião das cidades que se formaram depois, no rastro das boiadas que cruzaram nosso território, em busca de água e pastagens. Estas linhas foram escritas por Gilmar de Carvalho, enciclopédia viva da Cultura do Ceará e com quem tenho o prazer, e a honra, de partilhar amizade. Assim escreveu ele sobre uma reportagem, que publicou em jornal, sobre esta figura emblemática de Fortaleza que é o Senhor Raimundo Araújo.

 

 

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Loja vista da Travessa Crato

A primeira vez que comi queijo coalho achei estranho. Depois passe a tropeçar nele em qualquer local por onde passava no Ceará. Quer em restaurantes quer assadores ambulantes nas praias. Sim é uma tradição ser assado na praia, com pequenos fogareiros a carvão e em espetos. A sua consistência e sabor não me aproximavam de nenhum queijo português com tantas variedades de queijo com leite de ovinos e de caprinos. Pois o queijo coalho é feito preparado com leite bovino cru. Todos sabemos que o saber do queijo é marcado pela raça animal e especialmente a forma como esses animais se alimentam. Também temos alguns queijos com leite bovino, mas a consistência é diferente. Ainda tenho uma breve lembrança de queijos de leite de vaca que o meu Avô materno preparava na avenida do Sabor, em Bragança!

 

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Queijo coalho

Senhor Raimundo nasceu em 1935 em Chaval, município no extremo norte do Ceará e colado ao Piauí, e cedo começou a aprender a fazer queijo na fazenda “Poção” do seu Pai e aí ficou até aos 24 anos. Depois de casar em 1961 com Dona Cláudia, e ter 3 três filhos, decidiram, 1975, instalar-se em Fortaleza para cuidar da educação dos filhos, só por isso. Teve inicialmente um posto de açougue (talho) na Praça José de Alencar que manteve por quatro anos. Muda-se então para a Av General Bezerril, 151, no Centro, onde se mantém até agora. Inicialmente mantinha a venda de carnes verdes, mas um ano depois dedica-se ao queijo coalho e centra a sua atividade na sua preparação e venda. Mas a sua atividade não é exclusiva com queijos como veremos.

Quando se conversa com Senhor Raimundo, homem de poucas falas, nota-se de imediato o seu entusiasmo e rigor de linguagem quando o assunto é o queijo. Até parece vermos os seus olhos a brilhar. Por todo o Ceará se faz queijo coalho. Mas, no dizer de Senhor Raimundo, os melhores vêm de Tauá, do vale do Jaguaribe e do sertão central (Quixadá e Quixeramobim).

 

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Queijo coalho em cura intermédia

Dona Solange da fazenda Jatobá, em Cratéus, numa tarde quente e abafada dos Inhamuns, preparou um queijo de coalho e deu todos os passos de seu fabrico. Na fazenda Jatobá, o leite é de vacas de raça holandesa e localmente chamam “suite”. O leite em cru chega às mãos de Dona Solange que vai preparar o queijo com o “coalho de verdade” que também se chama “livro” obtido das vísceras do boi, guardado no soro, que todo dia é retirado e substituído por outro (soro). A duração média do coalho é três dias, findo o qual deverá ser substituído. Isso encarece e complica o processo, daí a utilização, cada vez maior, de um produto químico que provoca a mesma reação, de talhar o leite, dando-lhe a consistência da coalhada, a partir da qual é feito o queijo. Uma cuia do soro (onde estava o coalho) é passada num pano e misturada ao leite, com mais ou menos dois litros de água fervida. Dona Solange usa a colher de pau e o leite coalha, num passe de mágica, numa reação com as propriedades do “livro”. O leite coalhado, depois de receber a poção de sal, é escorrido no saco de tecido de algodão.

 

 

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Queijo coalho em cura de 4 meses

O soro vai sendo retirado com a cuia, o que fica no balde é cozido depois, para se retirar a nata, de onde se faz a manteiga da terra. Uma outra porção do soro é fervida para escaldar o queijo. Dona Solange não esconde o segredo: “queijo macio, coalhada mole, e se coloca mais soro quente ou se demora a fazer, o queijo fica mais duro”.

O preço alto do queijo é alto pois são necessários dez litros de leite para um quilo de queijo.

A colocação do sal leva a um procedimento manual de amassar que também espreme a massa, depois é colocada em formas retangulares em plástico ou acrílico (antigamente eram de madeira), forrada com nylon e enrolada num tecido de algodão. O queijo fica na forma de um dia para o outro, perde um pouco de soro e está pronto para sair para venda. Havia uma tradição antiga de pressionar o queijo com pesos. Os materiais de contacto com o queijo devem ser de madeira. Experiências com metais, não resultaram.

Consta que o queijo coalho tenha começado a ser confecionado há mais de 150 anos, e Câmara Cascudo afirma a sua existência desde a formação das primeiras fazendas do sertão. Será que o queijo mencionado várias vezes por Francisco Freire Alemão, no seu Diário de Viagem 1859, da Comissão Científica de Exploração, e no Ceará, é o queijo coalho? E vai mais preciso em Aracati quando exclama o queijo preparado na frigideira!

Mas voltemos ao Senhor Raimundo que é um exímio provador de queijo e passa por ele o controle de qualidade dos queijos que vende. Compra queijo, mas também lhes dá cura. Os queijos são expostos ao ar e dispõe habitualmente de duas categorias de queijo curado, cerca de dois meses, e os mais longos com apenas quatro meses. Garante que o padrão de qualidade de seus fornecedores nunca caiu. “O leite do Ceará é bom, depende de saber fazer o queijo”, assegura.

 

 

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Queijo de manteiga

O Senhor Raimundo também vende o queijo de manteiga que vem de Caicó (Rio Grande do Norte). “Aqui no Ceará ele quase não é fabricado, porque leva mais leite, dá mais trabalho e é muito gorduroso, porque ele é cozido na manteiga da terra”.

 

Aqui vende-se ainda uma carne de sol de preparação exclusiva do Senhor Raimundo, e umas linguiças de carne de suíno verde oriundas de Itapajé. Nesta loja o Senhor Raimundo vende ainda outros produtos, embalados, que garantem a identidade regional do Ceará.

 

 

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Carne de sol em preparação

 

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Carne de sol em preparação

 

 

 

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Linguiça de suíno

 

 

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Famosa “Paçoca”

 

Vejam as fotos de alguns doces:

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Rapadura natural

 

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Rapadura com coco

 

 

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Rapadura preta

 

 

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Alfenim de rapadura

 

 

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Doce de buriti

 

 

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Rapadura com milho verde

 

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Rapadura com goiaba

 

 

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Doce de caju

 

 

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Doce de caju, fruta em conserva

 

 

 

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Doce de goiaba

Não se esgotam nesta pequena amostragem de fotos a grande variedade de produtos em venda e que também tem várias cachaças. Este local já se transformou em ponto de paragem e convívio obrigatório, criando um espaço de tradição na Travessa Crato.

O melhor é ir ao "Raimundo do Queijo" e escolher no local. Bom Apetite!

© Virgílio Nogueiro Gomes

 

Raimundo do Queijo

Av. General Bezerril, 151 (Centro)

Fortaleza