Toucinho do céu, de Murça

 

 

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A transmissão de receituário conventual anda, ainda, envolta em grandes mistérios. É fascinante como uma receita dá origem a outras semelhantes, mas que tão bem se distinguem umas das outras, e criam verdadeiros ícones de doçaria regional. O toucinho do céu é basicamente um bolo confecionado a partir de um ponto de açúcar e depois é adicionado de amêndoas e gemas de ovo, habitualmente também doce de chila, para depois acabar a cozedura em forma de ir ao forno. A sua variedade é impressionante podendo conhecer Portugal através da rota dos seus toucinhos do céu. Só pela designação, este doce, sugere alguma curiosidade, mas que não leva toucinho!

Desde criança, e das memórias que guardei de idas à cidade do Porto, que Murça era paragem obrigatória. Ou para ganhar coragem para enfrentar as famosas e difíceis curvas de Murça, ou no regresso para descansar de ter efetuado esse trajeto. Nunca fiquei fascinado com a sua «porca» pois considerava que a de Bragança era maior e melhor, e com a vantagem de não estar distante, sem pedestal. Na de Bragança podíamos brincar e até nos colocarmos em cima dela em falso cavalgar.

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Toucinho do céu acabado de sair do forno

O Convento de São Bento de Murça foi criado por vontade de Simão Guedes, nono Senhor de Murça, na segunda metade do século XVI como um albergue para acolhimento de viandantes peregrinos e para assistência de pobres e enfermos. Mais tarde pediu aquele senhor licença à Santa Sé para transformar o albergue em convento e solicitou aos superiores da Ordem Beneditina o envio de religiosas para dar início a uma nova comunidade. O novo convento continuou com a obra assistencial do albergue, designadamente tratar dos enfermos e servir refeições aos pobres, e aumentou as suas funções acolhendo senhoras e instruir e educar raparigas. Foi com esta nova atividade do convento que se terá desenvolvido um apuramento das artes culinárias e possivelmente porque os seus instituidores viviam ao lado, mantendo a mesma capela comum ao convento e que aos senhores serviria como jazigo da família. Ora será desta última fase que se espalhou uma nova forma de receber nas casas mais abastadas, sendo fácil na região ainda associarem algumas receitas à sua origem conventual. Num texto do Município de Murça pode ler-se: A influência do convento de S. Bento marcou profundamente a vila e o concelho de Murça. As suas donzelas e senhoras primavam pelas boas maneiras; as rosquinhas, os cavacórios, as queijadas e o toucinho-do-céu corriam as bocas da região; a Vila ganhava fama de bem receber e de bem servir; o povo, enfim, esmerava-se no respeito e na religião.

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Outra imagem

Vejamos o que se diz, e se conta, sobre o Toucinho do céu de Murça onde estive e conversei com três doceiras sobre este afamado bolo. Desde sempre se conta a história que no Convento de São Bento ou Convento das Freiras Beneditinas se confecionava o toucinho do céu. Não sendo um convento de grandes dimensões há especialidades doceiras que prevaleceram. Uma das últimas criadas do convento, Serafina Rosa Alves, teria reunido num caderno as receitas principais tendo doada à sua afilhada Hermínia Alves o citado caderno. A sua filha, Maria José, a Zezinha como é conhecida, é a atual proprietária da “Casa das Queijadas” e com quem tive uma agradável conversa. Deixarei para outra crónica outros doces que surgiram nesse convento. Sobre o toucinho do céu escreveu António Luis Pinto da Costa, em” O Concelho de Murça”, 1992, que o toucinho do céu (a única iguaria a oferecer a Jesus Cristo, se acaso Ele voltasse a este mundo, diziam) ...

Cristina Castro escreveu em "A Doçaria Portuguesa Norte", 2016, o seguinte acerca do nome deste bolo: ...é interessante o facto de «toucinho do céu» associar o divino aos prazeres da doçaria. Será  uma tentativa de tornar o doce imediatamente apelativo pelo nome? Ou será uma forma de justificar (pois se ele é do céu) a vontade pecaminosa de o comer? Provavelmente, será um misto das duas coisas.

 

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Uma fatia

No famoso caderno encontramos uma receita para “Toucinho do céu” e outra com uma denominação curiosa que é “Bom Bocado de Murça à Moda de Braga” que também é um toucinho do céu, ligeiramente diferente do tradicional de Murça. Consta que esta receita terá sido trazida por uma freira que passou por conventos de Braga e Guimarães. Mas o que tem de diferente o toucinho do céu de Murça de outros? Especialmente a forma retangular em que é cozido no formo e depois cortado em fazias regulares. Os ingredientes são os de outros: açúcar, ovos, amêndoa, canela e doce de gila. As proporções dos ingredientes é que mudam e daí a magnífica variedade de toucinhos do céu. Há outros pequenos detalhe que podem variar, mesmo em Murça, como a gordura de barrar, ou não, a forma. E apresentaram-me outro numa forma diferente para inovar.

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Dona Zezinha

Eis um bom exempla para a autarquia local proteger este património, negociando a aquisição do caderno salvaguardando os interesses, também, da sua atual proprietária.

Casa das Queijadas
Praça 31 de janeiro, 13

5090-134 Murça

TL 259 511 386

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Homenagem à “Casa das Queijadas” de Dona Zezinha efetuada pela Confraria dos enófilos e Gastrónomos de Trás-os-Montes e Alto Douro

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Em Lisboa já comi Toucinho do Céu de Murça em dois restaurantes que o apresentam na sua forma mais legítima:

- Bel’ Empada
Av. João XXI, 24

1000-172 Lisboa

TL 214 075 172

- Madragoa Café
Rua da Esperança, 134

1200-659 Lisboa

TL 214 005 447

© Virgílio Nogueiro Gomes