Esparregado
Para nós, portugueses, quando se fala em esparregado todos temos a noção do que se fala, sendo um preparado de espinafres ou nabiças, e ainda outras verduras como urtigas, que são previamente cozidas, e depois reduzidas a puré, salteadas com azeite e alho fino e muitas vezes se engrossam com um pouco de farinha e se amaciam com natas. Depois há ainda quem lhes junte noz-moscada, vinagre e alguma pimenta. As variantes, ou produtos adicionais, são muitas havendo que ainda faça um creme juntando-lhe molho bechamel.
Segunda a nossa grande Mestra Maria de Lourdes Modesto, na Grande Enciclopédia da Cozinha, 1960, define esparregado como Picado de folhas verdes de diversas hortaliças, temperadas ou cozinhadas com azeite ou manteiga, a que muitas vezes se adiciona alho para aromatizar e farinha para dar corpo. Há ainda uma outra maneira de preparar o esparregado que consiste em ligar as folhas de hortaliça previamente cozidas ou estufadas e picadas com molho bechamel bastante espesso. Depois ainda informa que o esparregado pode ser confecionado com folhas de espinafres, de nabiças, acelgas, alfaces, chicória, ortigas, de rabanetes, de beterrabas, folhas verdes das papoilas e ramas dos nabos. Na mesma obra sugere duas receitas e ainda que o esparregado é um bom acompanhamento de assados ou estufados, enfeitado com triângulos de pão frito.
Curiosamente encontrei no livro “Arte de Cocina,…” de Francisco Martinez Montiño, 1661, chefe de cozinha do Rei Filipe II de Espanha, e que esteve uma temporada em Lisboa, uma receita de Espinacas à la Portuguesa (Espinafres à Portuguesa) que propõe lavar os espinafres e depois espremendo-os para perderem água, colocando-os em seguida em azeite, e juntam-se coentros frescos. Devem ser bem temperados com especiarias, sal e vinagre. Para terminar deitam-se ovos inteiros para escalfar. Seria, possivelmente, uma receita que aprendeu em Lisboa e por isso lhe chama à portuguesa.
Em A Arte do Cozinheiro e do Copeiro, 1841, do Visconde e Vilarinho de S. Romão, apresenta espinafres que se colhem preferencialmente na primavera e no outono porque são melhores, e informa que no verão são muito ácidos e que podem ser substituídos por folhas e grelos de beterraba. Como sabemos este livro é, no receituário, tradução do livro La Maison de Campagne de Aglae Adansan, publicado em 1822, portanto com um gosto muito afrancesado. Dá uma receita de Espinafres para dia de carne, em tudo semelhante ao nosso esparregado mas com a diferença que os espinafres são partidos à mão depois de cozidos, vão dourar numa caçarola com manteiga, temperados com sal, pimenta em pó, noz-moscada e depois junta-se farinha. À medida que vão secando junta-se caldo de carne, ou molho de assar carne para obter o puré final. Também se pode juntar gordura de aves. No final apresenta-se com fatias de pão corado em manteiga. Depois dá a receita de Espinafres para dias de peixe, confecionados como os anteriores no qual se substituem o caldo de carne por bom leite, e acrescenta em nota pessoal que ficarão muito gostosos, ajuntando-lhes molho de camaroens em vez do caldo da sopa. O receituário continua com Folhas e grelos de beterrabas, e manda guisá-los como a receita anterior. De forma mais clara e semelhante ao nosso esparregado atual, surge a receita de Azedas esparregadas que depois de cozidas espremendo-as bem com as mãos, e segai-as grosseiramente. Apesar da receita ser de azedas, manda juntar-lhes uma alface e umas perneiras de cerefólio. Depois vão para uma caçarola com manteiga, farinha, sal e pimenta, onde ficarão a estrugir. Se secar muito deve juntar-se leite. No acto de o servir deitai-lhe uma ligação de quatro gemas de ovos anaçadas… Servi-o com ovos cozidos e partidos em coroa…
Mas, de onde nos virá este hábito de comer e gostar de esparregado? Viajando agora, e apenas na escrita do século XX, em 1904, Carlos Bento do Maia, no seu livro Tratado Completo de Cozinha e Copa, apresenta uma definição genérica de esparregado que podem ser variadíssimos em relação ao tipo de ervas com que se confeciona. Explica que se cozem as ervas, escorrem-se e picam-se miudamente; em seguida levam-se ao lume, temperando-as, se são adubadas com manteiga, com sal e algumas vezes pimenta e, se são adubadas com azeite, com alho, pimenta e folhas de loureiro. Também é costume incorporar às vezes um pouco de farinha … usa-se enfeitá-lo com palitos de pão, fritos em azeite ou manteiga, e ovos cozidos, cortados em rodelas ou em coroas, como se cortam as melancias e os melões. Depois apresenta receitas de esparregado de alface, de chicória, de espinafres, de folhas de rabanete, de ortigas, de papoilas, de nabiças, de rama de beterraba e de rama de nabos.
Curiosamente, Olleboma, em Culinária Portuguesa, 1930, apesar de não apresentar nenhuma receita de esparregado, no capítulo de Vegetais, cita os “Esparregados Indianos” fazendo crer que é uma prática portuguesa e que Tanto no Oriente como na África Oriental fazem-se esparregados de diversas folhas: espinafres, couves, mostarda branca da China, nabos, abóbora, beldroegas, azedas, nabiças, etc. O esparregado é preparado como em Portugal, mas em vez de farinha, juntam-se 100 gramas de coco ralado para um quilo de esparregado e uma malagueta verde picada.
Manuel Ferreira, no livro A Cozinha Ideal, 1933, verdadeiramente o primeiro livro para profissionais, define esparregado como o termo que se dá aos purés de legumes verdes (espinafres, nabiças, folhas de nabo, etc.). Apresenta de seguida várias receitas de espinafres, em puré, inclusive uma receita de Espinafres à Portuguesa que é a forma tradicional de, ainda hoje, confecionar o esparregado.
Berta Rosa Limpo, no seu O Livro de Pantagruel, 1945, dá receitas de Esparregado de beldroegas, Esparregado de espinafres, Esparregado de espinafres com natas, Esparregado de nabiças e Esparregado para acompanhar peixes sendo que este último tem a particularidade de juntar coentros e a água, é água de cozer peixes.
Na Cozinha do Mundo Português, de M.A.M., 1962 são apresentadas três receitas: Esparregado à Indiana, Esparregado de espinafres e Esparregado de nabiças à portuguesa, sem novidades em relação ao atrás já descrito. Também em 1962, Maria Odette Cortes Valente, em Cozinha Regional Portuguesa dá uma receita de Esparregado de nabiças, sem indicar a região onde é tradicional.
Maria de Lourdes Modesto, em Cozinha Tradicional Portuguesa, 1982, apresenta uma receita de Esparregado de Feijão Verde na Beira Alta e um Esparregado de Favas ou Ervas na Beira Baixa.
Dos escritos do Visconde de Vilarinho de S. Romão aos nossos dias é fácil encontrar esparregados em receituários publicados. Mas de onde nos vem? A eterna dúvida em relação a tantas tradições alimentares…!
Consultando dicionários etimológicos vamos encontrar algumas dúvidas mas parece que o termo esparregado deriva de espargo que tem na proximidade do termo esparregar que nos remete para espargo. Esparregar seria “guisar espargos, couves etc.”, segundo Antônio Gerardo Correia na Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa. Já no Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa encontramos o termo esparregar que significa “preparar folhas, como espinafre, acelga, couve etc., fervendo-as em água, escorrendo e picando, e depois acrescentando os de mais ingredientes.” Para esparregado significa: “1 que se esparregou; guisado 2 guisado de espargos 3 guisado de verdura cozida, escorrida e picada…”
Por curiosidade, pergunto sempre, em restaurantes, que vegetais são usados na confeção do esparregado. A maioria é que são espinafres, outros têm a coragem que dizer que são nabiças. De facto há uma convicção de que o esparregado “original” (?) é feito apenas com espinafres. E é bom constatar que, mesmo em locais de refeições rápidas (fast food) o esparregado surge como uma proposta de acompanhamento, especialmente para carnes.
© Virgílio Nogueiro Gomes
Nota - Primeiras atestações, segundo o Houaiss:
- esparregar, primeira atestação em 1587: António Prestes, Primeira parte dos autos e comédias portuguesas por António Prestes e outros autores.
(esparregado, primeira atestação em 1713, sem fonte)