Caça e Carne

É fácil perceber que a caça terá sido uma das primeiras atividades para o consumo alimentar. Por certo que as artes da caça tenho sido aperfeiçoadas para uma melhor eficiência na captura de animais que se destinavam a compor as refeições. A caça, nesta perspetiva, será uma atividade muita antiga e especialmente desenvolvida após o aparecimento do fogo que permitia aos alimentos se transformarem e ganharem outra textura e, particularmente, outro sabor. Mas o fogo teve uma contribuição fundamental para a prática de organização das refeições em conjunto, e assim nascer o sentido convivial à volta da alimentação que ainda hoje perdura.

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Alheiras de caça

Se inicialmente a caça fez parte das atividades diretas para a alimentação, chegamos à Idade Média e assistimos a organização de caçadas com um caráter desportivo e, portanto, uma atividade de prazer e de ostentação. A caça organiza-se como um desporto de elite praticado por classes nas quais abundava o dinheiro. A caça transforma-se, então, em distração de determinadas classes e as artes culinárias dedicam-lhe confeções especiais e requintadas. Assistimos, portanto, à transformação de uma necessidade em atividade elitista e com requintes na mesa.

Tradicionalmente, quando hoje em dia se fala de caça, consideram-se espécies nas quais se incluem as rolas, as codornizes, as perdizes, os patos, os pombos, e as lebres e os coelhos. Depois temos a caça especial onde se inclui o javali, o corço e o veado, apenas se podendo caçar em territórios e datas especiais. No século passado era ainda vulgar caçar os faisões, as galinholas, as narcejas e as tarambolas, espécies hoje em dia protegidas e, portanto, de acesso dificultado, e ainda bem. Grandes conhecedores garantem que a elite culinária está destinada à galinhola que entre nós teve uma receita de Eduardo Foz com méritos de publicação.

 

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Salpicão de bísaro

Em alguns países da Europa central só se consome caça no período em que está autorizada a sua atividade. E esta questão, que tem a ver com a educação do gosto, mas deve-se especialmente para proteção das espécies e evitar o sua matança exagerada, e impedir o açambarcamento. Tenho pena que não exista uma regra destas em Portugal. Até porque nos habituámos a encontrar formas de confeção de produtos da caça complexas, muito apuradas, e que nos sabem muito melhor durante o tempo frio que coincide com o respetivo período da caça.

 

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Febras de porco bísaro

Mas a caça não tem só confeções pesadas ou muito elaboradas. Quantas vezes, em relação à perdiz, se faz uma boa canja e, depois, com a perdiz já cozida se embrulha em toucinho e vai alourar em tacho, ou então se corta em pedaços e se cobre com molho de escabeche, ou com um molho de vilão. Ainda sobre a valorização da caça é importante dizer a comunidade científica veio mostrar que a carne da caça tem valores de colesterol inferiores aos de outras carnes, e com menos gorduras. A questão da caça prende-se mais com a forma de confeção do que com as qualidades da carne em cru ou apenas cozida ou grelhada. Como em tudo, a moderação é boa conselheira.

O termo carne tem qualquer coisa de pecaminoso! Temos a tendência para associar a carne à luxúria, e até ao proibido. E depois temos o nosso corpo que é constituído por carne. A canção na voz de António Variações, quando “…a cabeça não tem juízo, o corpo é que paga…”, bem proclama. Temos a abstinência de carne que nos lembra o pecado. Mas quem tinha dinheiro pagava a bula, consumia carne, mas já não era pecado. E ainda nos habituaram a que peixe não puxa carroça. Ora aqui está a contradição, a carne símbolo de pecado, e a carne símbolo da força. Depois, na tradição popular, quando se fala em isco é sempre de carne.

 

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Molejas de vitela

Admito que na evolução da humanidade, os povos tenham começado a comer carne antes do peixe. E as primeiras carnes seriam de caça. Eram necessários produtos alimentares e a caça seria a fórmula mais prática. Depois veio a domesticação dos animais e a caça passou a ser um desporto ou uma forma de afirmação masculina entre algumas tribos. Hoje continuamos a ter dois grandes grupos de carne alimentar: a de animais domesticados ou criados em grande escala, e a caça.

 

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Mão de vaca com grão

Os animais domesticados e dos quais nos habituámos, regularmente, a comer a sua carne são os frangos, as galinhas, os perus e o capão, os coelhos, os borregos, os cabritos, os cordeiros, as cabras e as ovelhas, os maravilhosos porcos e leitões, os bois a quem chamamos sempre vacas, e os vitelos quem sempre chamamos, também, no feminino. Recentemente começou também a servir touro, mas que eu, como aficionado, decidi raramente comer pelo grande respeito e admiração que lhe tenho em corridas.

Tenho que afirmar que nós, portugueses, não temos um receituário elaborado para confeção de bovinos. Os bovinos foram encarados durante muito tempo com os tratores sem motor a nossa agricultura. Os tempos mudaram e agora, com o reconhecimento das raças autóctones, e definição das suas categorias, a melhor forma de as apreciar é grelhar. Depois há sempre os bifes mais ou menos cansados, e os pregos.

 

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Frango assado no espeto

Muito mais fáceis foram os suínos para os quais temos uma riqueza de receituário e formas de utilizar a totalidade do animal, permitindo-me não invocar todas as formas de os confecionar. Fruto de uma economia doméstica e de resistência bem se lhe pode chamar bem-aventurados. E a riqueza do nosso fumeiro!

Do coelho, para além de o cozer, assar ou grelhar, de escabeche é um prato sempre pronto. A maior curiosidade vai para um doce de Vila Viçosa no qual a carne branca de coelho, depois de bem cozida é pisada em almofariz, vai engrossar o doce com gemas e amêndoas.

 

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Naco de vitela

Os galináceos serão porventura os animais mais fáceis e baratos. Que também confecionamos de todas as formas e, semelhante ao coelho, veio dar particularidade a um doce de Coimbra, engrossado com peito de frango bem cozido e depois também pisado em almofariz. E depois, sem galinhas, não temos um dos produtos alimentares mais emblemáticos que é o ovo.

Finalmente os caprinos que se comem em todo o país, em caldeirada, em ensopado, recheados e especialmente assados. Produto obrigatório nas grandes festas, simboliza ainda o renascer para uma vida nova, um símbolo da paz trazido dos ensinamentos bíblicos.

Comam carne, mas não esqueçam os legumes a acompanhar, e o vinho.

Provérbios e expressões populares:

Não há carne sem osso, nem fruta sem caroço; Não há lenha como o azinho, nem carne como o toucinho; Quem come a carne, que roa os ossos; Vinho que baste, carne que farte e pão que sobre e seja eu pobre; A carne de acém é pouca e sabe bem, mas não para quem filhos tem; Carne de hoje, pão de ontem, vinho de outro verão fazem o homem são; Da carne faz o guisado, das peles guisa o engano; Abre o olho, que assam carne; Carne e peixe na mesma comida, encurtam a vida; Carne, carne cria; Carne de hoje faz o homem são; Carne de vaca bem cozida e mal assada; Carne junto ao osso, essa dá-me gozo; Ser carne para canhão; Em carne e osso; Carne sem osso; Carne da minha carne; Sofrer na própria carne.

© Virgílio Nogueiro Gomes

Textos publicados na Revista COMER