Calunga
A primeira vez que visitei o Museu do Ceará em Fortaleza, uma imagem me despertou a curiosidade e a minha atenção. Uma boneca negra dentro de uma coroa. Finalmente o desvendar de algum mistério sobre Calunga, a divindade sobre a qual tinha ouvido falar, pela primeira vez, em Salvador da Bahia. Transcrevo a legenda no museu:
Calunga no Museu do Ceará, Fortaleza
“Figura mais significativa do MARACATU, representando um ser supremo que possui o poder de evocar antepassados. Possui dois significados religiosos: Orixá maior – Deus –ou Deus Calunga, que corresponde ao mar. Representa ao mesmo tempo o sexo masculino e o feminino, podendo ser chamado tanto de D. Leopoldina como de Dom Luiz. Segundo a tradição africana, é dedicada ao Orixá Omulu.”
Desta vez não irei escrever sobre comida. Sempre dediquei uma atenção especial às tradições afro-brasileiras tendo escrito outras crónicas sobre o assunto e em especial sobre alimentos votivos a orixás. Sobre Calunga as informações não são todas coincidentes tendo, no entanto, uma linha comum, e sempre associada aos rituais africanos e considerada um elemento sagrado dos Maracatus. Alguns autores sugerem mesmo que “sem ela o Maracatu não sai”.
Maracatu Nação Pici
Segundo Sérgio Pires, em Ispaia Brasa, 2004, Calunga é uma “Boneca carregada por uma negra do cordão, geralmente vestida com roupa idêntica à de sua condutora. Em Pernanbuco recebia oferendas (moedas) no decorrer do desfile. Representação do mar ou da morte.” Esta definição leva-nos apenas à representação no desfile e ainda à origem pernambucana do Maracatu. Pingo de Fortaleza, em Maracatu Az de Ouro, 2007, pode ler-se: “Negra da Calunga: É uma negra que desfila no centro da ala das negras com fantasia igual ao restante da ala e que carrega a Calunga do maracatu. A calunga é uma boneca preta fantasiada também de negra e que traduz o elemento religioso do grupo, simboliza a força e o poder. É um totem e a ela são ainda feitos pedidos pelos brincantes, antes do cortejo. No idioma africano quioco, calunga quer dizer «mar» e aparece nessa aceção nos cantos de macumba e candomblés cariocas e baianos.”
Maracatu Nação Iracema
Continuando com referências a Calunga, Regiane Augusto de Mattos escreveu, em História e cultura afro-brasileira, 2011, escreveu: “Uma boneca, em geral feita de pano, chamada calunga, é levada pelas damas do paço, representando uma divindade. …no século XVIII os chefes de algumas linhagens ambuandas, na região Centro – Ocidental da África, recebiam uma boneca de madeira, também denominada calunga. Essa boneca tinha o poder de se comunicar com as forças sobrenaturais e era o símbolo do poder político das linhagens. Cada calunga representava um território banhado por um rio e a linhagem que a detinha era responsável por aquela área. Em Pernanbuco, depois da abolição da escravidão, a figura do rei do Congo desapareceu dos cortejos e, no seu lugar, foi colocada a boneca como representação do poder político e espiritual.” Francisco Augusto Pereira da Costa, em 1908, e numa descrição do maracatu carnavalesco de Pernanbuco, cita também Calunga como representação no desfile.
Calunga de Maracatu
Segundo Câmara Cascudo, no Dicionário do Folclore Brasileiro, 1954, no verbete Calunga escreveu: “Boneca, figurinha de pano, madeira, osso, metal; … Nos maracatus do Recife, os calungas são duas bonecas (às vezes uma única), Dom Henrique e Dona Clara, que vão nas mãos dançantes das negras e recebem as espórtulas dos admiradores.” Refere ainda o seu sentido totémico, a associação ao mar e aos santos d’ água como ainda sendo uma forma de tratamento de gente ilustre. É agora tempo para lembrar uma foto incluída na obra Maracatu Leão Coroado, de 1989, de Humberto Araújo, Recife, na qual aparecem duas bonecas, Calungas, que não têm o ar de crianças como em Fortaleza, mas duas bonecas com ar de jovens. No texto de Raul Lody, na mesma obra, depois de citar o nome de vários maracatus, “… onde estão as calungas”, como sendo presença obrigatória. Mas neste exemplo as calungas representam Dona Clara e Dona Isabel (princesa). Na obra A Corte vai passar, de Luiz Santos e Celso Oliveira, 2001, no texto de Raul Lody descrevendo o cortejo “… dama-do-passo carregando a calunga, boneca que é orixá…”, assinala a sua presença e o seu sentido superior.
Calunga de Maracatu
Para vários autores Calunga tem sempre um significado associado a comunidades negras e a um sentido espírita, e conforme as regiões se vai encontrando uma aproximação ou aos pretos - velhos, ou ao mar e divindades relacionadas. Mas, sem querer relacionar com o maracatu de Pernambuco, as minhas referências e, especialmente, as minhas vivências são da relação da Calunga com o Maracatu Cearense. Gilmar de Carvalho, em Artes da Tradição, 2005, é perentório: “Mas não me venham com histórias de que o cortejo foi importado do Recife. Tivemos nossas irmandades de negros, igrejas de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos e coroações nas ruas do Crato, Icó e Aracati.” Ainda de Gilmar de Carvalho, descrevendo o cortejo: “…A calunga, a boneca preta, encimava o pálio.”
Calunga de Maracatu
Oswald Barroso, em declarações para o estudo da ancestralidade do maracatu elaborado por J. Clerton Martins, disse: “É a preta velha, que muitas vezes aparece ao lado do preto velho… Ao seu lado, vem a calunga, uma boneca preta vestida como uma baiana do maracatu, o mesmo traje do brincante que a conduz. … é bonito imaginá-la como a representação do mar, de la mer, o mar feminino dos franceses, o grande mar atlântico que separa e liga os negros de e à sua mãe, à mama África…”
Maracatu Az de Ouro
Entrei no Maracatu Rei de Paus em Dezembro de 2009 para iniciar os ensaios pela mão da saudosa Berê, que tinha já combinado com Dona Nazíra viúva do histórico Geraldo Barbosa. Ainda hoje recordo a minha atrapalhação no primeiro ensaio até que o Bebeto (Francisco Barbosa e filho de Nazíra e Geraldo) me entrega ao Senhor Cícero Anastácio para me ensinar a dançar, e com a responsabilidade de garantir a minha fantasia. Fiquei a saber que iria desfilar na corte. O Senhor Cícero foi o meu verdadeiro Mestre e agora grande Amigo. Fui adotado por toda a sua Família. No final do primeiro ensaio fiz inúmeras perguntas. Queria entender tudo e muito depressa. Rapidamente percebi que não era fácil. E quanto mais me satisfaziam a minha curiosidade mais perguntas tinha para fazer. Especialmente queria saber a história do maracatu, a sequência do cortejo e as suas explicações. Aos poucos foi anotando respostas. Continuo sabendo pouco!
Coroação da Rainha de Az de Ouro
Reparei que havia atitudes que levam ao sentimento, à fé, a convicções, ligações às religiões afro-brasileiras, e a tantas tradições que continuo a estudar. Logo de início percebi que havia genericamente dois tipos de brincantes: o convicto e o folião de carnaval. O verdadeiro brincante na opinião de Oswald Barroso: “Então ele é um ator que incorpora uma entidade e que vive a dimensão da arte, que não, que não representa. Ele é um ator, que, que se apresenta. Ele não está ali interpretando, ele tá ali, vivendo uma dimensão diferente, a dimensão da arte, uma dimensão do sagrado. Ele tá desencantando um Deus que tinha dentro dele…”
Calungas para o desfile do Maracatu Nação Fortaleza
Esta matéria daria para um texto desconfortável de ler na Net. Ainda quero referir situações que presenciei que envolvem a Calunga. Reparei que em dia de desfile alguns dos brincantes se dirigiam à Calunga e lhe tocavam com a mão. Tive a ousadia de perguntar a alguns porque o faziam: por hábito, por tradição, por ver os outros fazer, e ninguém ia mais longe na resposta. Percebi depois que muitos o faziam como um ritual, um sentido de esperança e os desejos de um bom desfile. Acredito que as convicções vão mais longe.
Desfilei 3 anos consecutivos no Maracatu Rei de Paus e, depois, por razões de saúde deixei de poder carregar uma fantasia tão pesada e desfilei com o Afoxé Odum Odolá, sobre o qual escreverei mais tarde, e comecei a frequentar o Maracatu Az de Ouro e conhecendo outros como o Maracatu Nação Fortaleza, o Maracatu Nação Pici e o Maracatu Solar. À procura de mais respostas. Mesmo a Calunga tem algumas diferenças de grupo para grupo. Não há um códice de força, como também não existe para as religiões afro-brasileiras. Cada terreiro terá as suas normas e variação de procedimentos. A Calunga é presença obrigatória na coroação de Reis e consta de muitas loas.
Maracatu Solar
Recordando Mestre Juca do Balaio na loa Balacobaco: “…Nossa rainha vai se coroar/ Xangô Xangô / Boneca preta, Meu Pai Xangô…”
Para terminar gostaria muito de desafiar amigos e imprensa a visitar o Carnaval de Fortaleza, seguro, bem organizado, sem multidões, e um desfile de Maracatus invulgares, e cheios de história e muitas estórias para contar.
© Virgílio Nogueiro Gomes
Por favor, quem conseguir identificar o maracatu das 3 fotos não completas, informar-me para completar