Carpaccio
A parecer o tradicional...
Insurjo-me frequentemente pela designação menos correta que é atribuída a alguns pratos. Por muito que custe aos improvisadores de culinária, há receitas que têm princípio, e uma história. A sua história.
Não temos o hábito de considerar uma criação nova como algo sujeito a um registo, a uma patente. O problema é que essa criação culinária é muitas vezes alvo de grande sucesso e as execuções nem sempre são as corretas ou de acordo com a receita original. Isto não é pecado só de nós portugueses. Viajo um pouco pelo Mundo e tenho encontrado vários surpresas e, lamentavelmente, quase sempre pela negativa. A pior de todas foi num país tropical, com muito calor pedir um “Carpaccio” acompanhado de uma salada e, depois, comeria apenas uma sobremesa. Indignação do “maître” por este cliente pindérico, mas eu aguentei a sua má disposição. Quando chegou o “Carpaccio” eis que me apresentam umas fatias de carne bem cortadas e cruas mas completamente cobertas por um molho à base de mostarda (que não deixava sequer ver a carne) e uma imensidão de alcaparras! Chamei o “maître” que, ainda mais mal disposto, não entendeu a minha exclamação e respondeu que naquele restaurante era assim e que nunca ninguém tinha reclamado. Aquilo era o legítimo carpaccio. E virou-me as costas.
Tentei rapar o máximo do molho. O essencial no “Carpaccio” é a qualidade da carne e do seu corte. Ora, o molho tão forte não dava para sentir a carne. O “Carpaccio” é também daquelas iguarias de que se conhece o nascimento e a sua história.
De salmão com morangos...
Viajemos até Veneza no ano de 1950. O famoso Harry’s Bar, prestigiado restaurante local e próximo da Praça de São Marcos, tinha vários clientes famosos. Dentre eles contava-se a Condessa Amália Nani Moncenigo (familiar da Marquesa de Cadaval, grande meçanas da cultura em Portugal) que, devido a uma dieta especial, foi proibida de comer carne cozinhada. O proprietário do restaurante, Giuseppe Cipriani, quis agradar à sua especial cliente e criou, que inicialmente se chamava “beef carpaccio”, o renomado prato e homenageou o seu pintor, também veneziano, Vittore Scarpaza( 1460-1525) cuja nomeada, ou nome artístico, era exatamente Carpaccio. A cor da carne cortada tão fina fez-lhe lembrar as tonalidades vermelhas da sua pintura.
Mais uma variante...
Aqui temos o exemplo de como começou um prato que, devido ao seu sucesso, se transformou numa “técnica” de corte de vários produtos alimentares e hoje é fácil ver nos cardápios “carpaccios” de peixe (até de bacalhau) e mariscos, outras carnes e frutas. Tenho que afirmar que não concordo com esta prática. Mas devido às proporções mundiais que tomou, que posso fazer…! Apenas exigir que, quando têm pretensões de servir o clássico, o façam de acordo com o seu criador. Confesso que já estive no Harry´s algumas vezes. É um local mágico. Onde também bebi o “Cocktail Bellini”, aí nascido, e comi o “Carpaccio” à séria.
© Virgílio Nogueiro Gomes