Fios de Ovos
Os fios de ovos tiveram vários nomes ou formas de serem designados. Também se chamaram ovos em fio, ovos de fio, ovos reais, ovos de aletria ou aletria de ovos. Sempre tive muita curiosidade sobre esta iguaria e tentei descobrir onde terá nascido e como se desenvolveu como doçaria autónoma e, melhor, como se expandiu para constituir complemento de outros doces.
Curiosamente também vamos encontrar a partir do século XVII os fios de ovos como elemento de enfeite, ou guarnição de pratos salgados. Não podemos esquecer uma moda da época, ou gosto, de composições agridoces. Em Domingos Rodrigues, no seu livro “Arte de Cozinha”, 1680, encontramos fios de ovos a guarnecer galinha, carneiro, pombos, frangos e cabritos de alfitete. Mas Domingos Rodrigues, na mesma obra também nos dá a receita de “Aletria de ovos” que corresponde, de facto, aos contemporâneos fios de ovos. Esclarece, no entanto, que do mesmo modo se fazem os “Ovos reais”, mas mais grossos.
Fatia de pudim com fios de ovos
Segundo vários autores parece que os fios de ovos nasceram no Mosteiro de S. Bento da Ave-Maria, do Porto, de onde surge a primeira receita. Este mosteiro foi fundado em 1518 sob a tutela de D. Manuel e povoado com freiras beneditinas. A receita seguinte é oriunda do Convento de S. João da Penitência, ou das Maltezas, que foi fundado em 1530 como hospital da Ordem de Malta e posteriormente recebeu o convento feminino onde residiram várias senhoras da alta nobreza portuguesa. Este convento extinguiu-se em 1787. Ora, a receita de ambas as instituições é muito semelhante apesar da distância entre as duas casas. Com gemas de ovos cortadas com faca, e depois peneiradas, utilizando um funil próprio vão-se deitando as gemas sobre um açúcar em ponto de pérola e que se submetem a uma cozida ligeira. Com a ajuda de uma escumadeira, vão-se retirando os fios que se colocam sobre uma grelha para escorrem. Ao mesmo tempo borrifa-se a calda de açúcar com água para impedir que altere o ponto. Mas a tradição de confecionar fios de ovos não se restringiu àqueles conventos. Também surgem na lista de doçaria dos conventos de Lisboa conforme se pode ler na obra “A Tradição Conventual da Doçaria de Lisboa” de Carlos Consiglieri e Marília Abreu. Se voltarmos ao Norte também na “Doçaria de Guimarães”, com coordenação de Isabel Maria Fernandes, encontramos uma referência a “Ovos reais” de 1665, e a indicação de um manuscrito do Mosteiro de Tibães com uma receita de ovos reais. O livro de “Receitas da casa do mosteiro de Landim” tem também uma receita de fios ovos em fio que depois de terminados, colocam-se numa travessa e “deita-se-lhes por cima calda de açúcar que serviu paro os cozer e enfeita-se com doce de cereja.” “Ovos reais ou de fio” é a receita que aparece no “Livro de Receitas da última Freira de Odivelas”, que depois de terminada também os cobre com calda de açúcar em ponto de espelho alto. Não deixa de ser curiosa a receita de “Fartes de Ovos de Fio”, constante num manuscrito do Convento de Santa Clara de Évora, e 1729, em que utiliza os ovos de fio como recheio para os fartes, o que parece podermos supor que era uma prática corrente a confeção dos ovos de fio. Também, recentemente, no livro “Doçaria Conventual de Lorvão”, Nelson Correia Borges apresenta uma receita de fios de ovos acrescentando que “…estão prontos a ser utilizados em vários doces, designadamente nos Morgados.” Ora é esta característica de complemento ou enfeite de outros doces que leva a uma grande produção de fios de ovos.
Montagem de canudos com fios de ovos da Pastelaria Alcoa, Alcobaça
Mas, há uma receita que parece ser o grande elogio dos fios de ovos: a Palha de Abrantes. Apesar de ter várias versões, genericamente a Palha de Abrantes é confecionada colocando sobre uma folha de obreia, um círculo de cinco centímetros de diâmetro, um creme feito em calda de açúcar em ponto de fio com gemas de ovo e miolo de amêndoa. Sobre este creme colocam-se fios de ovos e levam-se a forno bem quente apenas para tostar as pontas.
Em pastelaria, e sem querer ser exaustivo, os fios de ovos entram nos duchesses, nas tíbias, nos cestinhos de nougat, nos canudos e nas cornucópias. Fundamentais são também nos pingos de Tocha e nos D. Rodrigos do Algarve. Ainda no Pão de Rala e em Morgados e Fidalgos. Recheiam e enfeitam Lampreias de Ovos que na Chamusca também se chama de Bicha de Ovos. É também vulgar encontrar fios de ovos a enfeitar pudins, como no caso do Pudim Marfim, ou bolos como o Toucinho-do-céu, o Bolo-rei ou a enriquecer alguns Pães-de-ló.
Pingos de Tocha
Pão de Rala
Mãos habilidosas da Cremilde a preparar D. Rodrigos
Os fios de ovos viajaram pelo mundo e fixaram-se, também, como tradição noutras paragens. No Brasil é fácil encontrá-los em pastelarias ou execuções requintadas. Raul Lody, no seu “Vocabulário do Açúcar, 2011, define fios de ovos como “iguaria associada á mesa portuguesa, à tradição da doçaria conventual; è feita de gemas de ovos e açúcar. Também são utilizados como recheio de muitos doces e como cobertura de bolos e tortas.” Ainda no Brasil, no “Dicionário do Doceiro Brasileiro”, 1892, de Dr António José de Souza Rego, não apresenta receita de fios de ovos mas tem uma curiosa receita de “Ovos de Aranha” onde sugere que “Façam-se fios de ovos e com eles bolinhas cobertas com açúcar em ponto de quebrar em pequenas porções, para esfriar logo. Depois disto, arranjem-se em prato e teçam-se por cima para imitar teias de aranha.” Por estes dois verbetes supõe-se que os fios de ovos são um elemento para outros doces. Mas, e continuando no Brasil, no livro “Delícias das Sinhás”, encontramos uma delicada receita de “Aletria d’ ovos” juntando os fios de ovos com massa cabelo de anjo e que enfeita o todo com confeitos. No mesmo livro encontramos fios de ovos a decorar um “Creme branco”. No livro “A Doçaria Tradicional de Pelotas” apresenta uma receita de “Fios de Ovos” idênticos aos tradicionais portugueses. Pena que neste livro não tenham resistido à tentação, nefasta, de utilizar leite condensado para outras receitas que pretenderiam ser tradicionais.
Canudos de fios de ovos
A história mais fantástica que envolve fios de ovos ouvi-a contar à minha amiga Catarina Portas, relatando um episódio que aconteceu em Banguecoque, durante uma viagem que fez ao Oriente. Durante um passeio a pé pelas ruas daquela cidade uma vendedora tenta vender-lhe uma caixinha que continha doces: fios de ovos. Curiosa em saber com a popularidade, naquelas paragens, deste docinho tão português, decidiu investigar. “Mergulhou” na biblioteca da Siam Siciety e encontrou um relato de Maria Guiomar Pina, nascida em Ayutthaya, antiga capital da Tailândia, em 1664, e filha de imigrantes japoneses convertidos ao catolicismo que, por isso, fugiram do Japão onde missionários jesuítas portugueses teriam instalado a tradição dos fios de ovos. Casou em 1684 com um grego, também convertido ao catolicismo após casamento, que se transformou em rico empresário com acesso à corte local. Depois de um golpe de estado o marido de Guiomar foi assassinado, e a ela foi atribuída uma pena de prisão “inédita”. Foi nomeada governanta das cozinhas reais, local onde passou a confecionar os famosos doces de ovos de origem portuguesa, incluindo os nossos fios de ovos. E assim se instalou uma tradição longínqua, e obrigatória em casamentos.
Fios de ovos em taça
© Virgílio Nogueiro Gomes
- A segunda e sétima foto são de Adriana Freire