Pudim Abade de Priscos em fatia (1)

 

Lá volto eu aos doces. O doce provoca uma satisfação emocional à grande maioria das pessoas. Não é necessário comer muitos. Mas vale muito provar e contentar-se. Os pudins incluem-se neste grupo. Com uma colher alegramos a boca e os sentidos.

O termo pudim surgiu possivelmente só no século XIX e, seguramente importado da terminologia inglesa. Mas os portugueses já faziam o que agora se apelida de “pudins”, que chamavam flans ou flaones, e poderemos afirmar que desde o século XVI.

Tratemos então os dois tipos de pudins mais importantes e que continuam a confecionar-se em Portugal: os de leite, e os de ovos. Estes últimos são verdadeiramente mais de gemas, e nunca de ovos inteiros. Alguns considerados de gemas também levam leite, e os de leite levam sempre ovos. Também existem ainda outros pudins como os de pão, de mel, de água, e de frutas mas que são integrados naquelas duas grandes categorias.

Podemos acreditar que os primeiros pudins tenham sido os de leite. Aliás, os elementos que os compõem deram também origem aos variados cremes de leite, muitas vezes polvilhados com açúcar e depois queimados. Quase todos os pudins utilizam na sua confeção tanto o leite como os ovos. A sua proporção, ou categoria com maior quantidade ditará a sua designação.

Atendendo ao receituário escrito, temos uma referência de um “Pudim Dourado” do Mosteiro de Santa Clara de Caminha que é verdadeiramente um pudim muito semelhante aos pudins que encontramos em restaurantes como “pudim da casa”, ou “pudim francês”, termo amplamente usado, também próximo dos pudins flans mas cuja receita utiliza manteiga para barrar a forma, em vez de caramelo. Ora o pudim de leite mais delicado que conhecemos é o que atualmente é apresentado como “Pudim Marfim”, possivelmente oriundo do Convento de Santa Clara, de Évora. Este pudim surge após estudos, destinados a elaborar uma lista de doçaria do século XVIII, para fixar num restaurante de luxo instalado nas antigas cozinhas do Palácio Nacional de Queluz, Cozinha Velha”, e que ainda mantém a receita e o pudim faz parte da oferta permanente. E a receita terá sido transmitida por uma familiar da doceira, possivelmente com relações com o convento, que iniciou os trabalhos de pastelaria na abertura daquele restaurante, que terá tido contactos diretos com o convento. De facto, este Pudim Marfim, tem uma elaboração muito delicada e são necessárias várias horas de muita atenção. Começa-se por colocar ao lume dois litros de leite com meio quilo de açúcar e uma vagem de baunilha. Quando o leite reduzir para metade, deixa-se arrefecer e retira-se a vagem baunilha. A frio, e mexendo lentamente, juntam-se catorze gemas de ovo. Barra-se uma forma de bolo inglês com manteiga e enche-se com o creme. Vai ao forno a cozer em lume brando e em banho-maria, até cerca de duas horas, e cobre-se com papel. Deixa-se arrefecer e só depois se desenforma. Polvilha-se com açúcar que é queimado com ferro em brasa. É tradição enfeitar também com fios de ovos. Este é, portanto, o pudim de leite mais famoso e delicado.

Pudim Marfim (2)

 

Vejamos agora os pudins de ovos, quer dizer gemas. Isto quer dizer que o peso das gemas de ovo constitui o ingrediente principal para além dos ovos. Conforme se pode ver em muitas receitas a variação tem muito que ver com a proporção das quantidades dos elementos utilizados na sua confeção. Encontramos com facilidade vários pudins, com mais ou menos açúcar e também variando a quantidade de gemas de ovos. Estes pudins adquirem várias designações como pudins de ovos, pudins franceses, e outros. O pudim mais famoso nesta categoria é o extraordinário Pudim Abade de Priscos. Priscos é uma freguesia do concelho de Braga onde o Padre Manuel Joaquim Machado Rebelo, 1834 – 1930, foi nomeado Abade e onde se manteve por mais de quarenta anos. Notabilizou-me por ser um gastrónomo e organizou vários banquetes importantes, inclusivamente para os reis D. Luis e D. Carlos. A receita deste pudim foi das poucas encontradas, desconhecendo-se o paradeiro do seu famoso caderno. Esta receita foi fornecida para a escola do Magistério Primário feminino, a pedido do seu diretor, para ensinar tradições locais. Esta escola funcionava no antigo Convento dos Congregados, em Braga. Esta receita é possivelmente a mais delicada e importante receita após a extinção das ordens religiosas, em Portugal, coincidentemente o mesmo ano do nascimento deste Abade, 1834. Supõe-se que a primeira vez que a receita foi publicada será em 1928 por Febronia Mimoso numa editora de A. Figueirinhas Lda, do Porto. O pudim adquiriu tanta fama e notoriedade que o brasão e a bandeira da freguesia de Priscos têm representado um pudim. Digamos mais, este é, hoje em dia, um pudim confecionado em todo o país, transformado num ícone da doçaria portuguesa. O que transforma este pudim numa iguaria tão especial? Vejamos receita. Coloca-se água ao lume, e logo que ferva junta-se açúcar pilé, uma casca de limão, um pau de canela e um pedaço de presunto gordo de Chaves ou de Melgaço, conforme refere o original. Entretanto, à parte, preparam-se as gemas de ovos que se misturam com um cálice de vinho do Porto. Logo que o açúcar esteja em meio ponto, retira-se do lume e coa-se por rede muito fina, garantindo que não entra a casca do limão, o pau de canela ou a presunto. É agora tempo de se lhe juntarem as gemas de ovo. Prepara-se uma forma de pudim que é rigorosamente barrada com caramelo, e depois deita-se ao preparado de açúcar com as gemas. Tapa-se a forma e leva-se a cozer, em banho-maria, a forno bem quente. Desenforma-se depois de arrefecer. Parece simples. A criatividade de incluir o presunto dá uma textura invulgar ao creme. Juntando o vinho do Porto elimina-se a possibilidade de sentir o sabor do presunto. Apetece dizer: genial.

Pudim de Maçã (3)

 

Mas um pudim ao ser analisado, por conhecedores, não deverá ter bolhas. Para isso os ovos devem ser misturados, cortados, com a ajuda de um garfo, e a frio. Depois dessa incorporação deve-se deixar repousar a mistura. Por outro lado o pudim é presença obrigatória em casamentos tradicionais, e no interior há sempre um elemento feminino na família que é especialista em pudins e que os confecionará para os festejos. Constitui também sobremesa de elite. Em minha casa sempre havia pudins nas épocas festivas ou alguma celebração. No caderno de receitas da minha Mãe aparecem os pudins das Antilhas (com bananas) de Abóbora, de Amêndoa, de Café com Natas, de Cenoura, de Coco, de Laranja, de Maçã (o preferido), de Mármore e de Pão, para além do tradicional “francês” que era o mais confecionado.

Pudim de S. Bernardo (4)

 

Nos registos conventuais encontramos quase uma trintena de receitas de pudins. Embora hoje se questione a quantidade de açúcar, defendo que a receita não deve ser alterada. O que se deverá sugerir, e mentalizar, é servir uma porção mais pequena e por vezes acompanhada por fruta.

E brindem com o pudim, e um vinho generoso português.

Pudim de S. Bernardo para venda às fatias

 

© Virgílio Nogueiro Gomes

 

(1) do Restaurante Torres em Vila Verde

(2) do Restaurante Cozinha Velha em Queluz

(3) como se fazia em minha casa, este da minha irmã Lina

(4) da Pastelaria Alcoa em Alcobaça