Cristina Holanda, de Oxum, quando nos encontrámos no desfile do Maracatu Rei de Paus, em 2012
Já não é a primeira vez que escrevo sobre temas relacionados com a cultura afro-brasileira, no âmbito das religiões. Em Portugal, são pouco conhecidas e sobretudo pouco divulgadas. Importantes têm sido as investigações que Ismael Pordeus Júnior tem efetuado neste país e que levou à publicação dos livros: “Uma Casa Luso-Afro-Brasileira com Certeza”, editado por Terceira Margem, São Paulo, em 2000 e “Portugal em Transe” publicado pela Imprensa de Ciências Sociais, Lisboa, em 2009, e sei que está para breve um terceiro livro. Reafirmo que para mim não há hierarquia de religiões, não há melhores nem piores, mais importantes ou menos importantes. A todas as religiões está associada uma questão de fé. Por isso não me permito questioná-las. Escrevi em tempos uma crónica sobre Oxóssi. Aí apresento algumas das razões que me levam a escrever sobre detalhes de algumas religiões. Naturalmente quando entram alimentos ou práticas alimentares. Mas será que os Deuses são gulosos? Ou será que a prática das religiões é que levam a fazer supor a alimentação dos Deuses? A alimentação significa uma forma convivial de partilha. Oferecer às divindades poderá significar uma aproximação, partilhar com elas um pouco da nossa emoção generosa. E muitas vezes a generosidades tem a ver com um agradecimento ou um pedido.
Cristina desfilando como Oxum 2012
Desta vez escolhi Oxum. Tudo, ou as escolhas, tem uma razão. Que às vezes não queremos aclarar. Pois bem. Escolhi Oxum que é uma forma de manifestar a minha pena por perder a minha amiga Cristina Holanda do convívio quase diário a que me habituei em Fortaleza. Não a perdi, só que aceitou, e muito bem, um novo desafio profissional que a levou a fixar-se em Brasília. Mas vou sentir saudades! É que a Cristina desfilou de Oxum, no Maracatu Rei de Pais, onde eu também desfilei por três anos consecutivos. Esta crónica é uma homenagem a ela. Graças à Cristina eu doei a minha última fantasia ao Museu do Ceará.
Ainda no desfile de 2012
Há muito tempo que tinha curiosidade sobre rituais africanos. Com as minhas viagens frequentes ao Brasil fui satisfazendo a minha curiosidade mas, em simultâneo, vinha descobrindo um horizonte muito mais vasto com muito, muito mais a descobrir. Comecei por Salvador da Bahia e depois em Fortaleza. Comecei por integrar um grupo de maracatu no seio de qual fui aprendendo. Mas não era tudo. Visitei alguns terreiros e continuava a fazer perguntas. Tive a sorte, ou quis o meu fado, que encontrasse pessoas fantásticas que tinham paciência para me elucidar. Para além da Cristina lembro o Francisco Barbosa, o Hilário Ferreira, o Ismael Pordeus Jr, o Gilmar de Carvalho, a Mãe Bia, o Pai Ricardo, o Pai Vagner, e mais alguns que deixarei para outros escritos.
Segundo Vagner Gonçalves da Silva, “Oxum é a deusa iorubana da água doce, dos lagos, das fontes e das cachoeiras.” Talvez por isso em África se mantenha associada ao conceito de fertilidade das mulheres e a força delas decorrentes como a procriação que garante a continuidade do Mundo. No Brasil e com o intuito de enganar a imposição da Igreja Católica, Oxum foi sempre associada a Nossa Senhora da Conceição, ou Nossa Senhora das Dores. A este “sincretismo” dos Orixás com divindades da religião dominadora estabelecem-se, agora, algumas opiniões discordantes pois deixou de haver uma relação colonizadora/colonizado ou o sentido de repressão em relação aos escravos de origem africana. Segundo Monica Buonfiglio: “o sincretismo deveria ser banido em todos os terreiros para reforçar a ideia de que o candomblé não é folclore, mas religião”. Lamentavelmente há muitos locais que associam a esta prática religiosa um aparato de folclore que potencia a venda turística. Mas não são apenas estas religiões que o fazem…!
Cristina dançando e desfilando como Oxum, 2013
Pierre Verger compilou as lendas africanas de Orixás. Sobre Oxum, começa por escrever: ”Oxum era muito bonita, dengosa e vaidosa. Como o são, geralmente, as belas mulheres… e tinha paixão pelas joias de cobre… Oxum o humor caprichoso e mutável. Alguns dias, suas águas correm aprazíveis e calmas, elas deslizam com graça, frescas e límpidas, entre margens cobertas de brilhante vegetação… Outras vezes, suas águas tumultuadas passam estrondando, cheias de correntezas e torvelinhos, transbordando e inundando campos e florestas.” E é sobre este comportamento que a lenda conta como Oxum obrigou o rei Olowu a livrar-se da sua esposa Nkan. Olowu ofereceu-lhe para compensar tecidos, búzios, bois, galinhas e escravos. Ainda mel de abelhas e pratos de mulukun com cebola, feijão-fradinho, sal e camarões, mas Oxum tudo devolveu às margens. É este temperamento que vem constituir, sempre, o móbil da estórias ou lendas de Oxum, e que vos proponham vão ler em livros especializados. Ora já temos nesta pequena abordagem um conjunto de alimentos que irão depois ficar ligados às oferendas que farão a Oxum.
Cristina e eu, no dia em que ficou em exposição a minha fantasia no Museu do Ceará, Fortaleza
Segundo Maria Helena Farelli, Oxum tem como favoritas as receitas de ”Omolocum” constituída por feijão-fradinho, ovos, camarão seco, cebola e azeite. Para o “Ipeté” é necessário aipim, camarão seco, cebola, pimenta, óleo de dendê e água. Ainda a receita de “Xinxim de Galinha” que se prepara com galinha, camarão seco moído, amendoim torrado, cebolas, salsa, coentros, alho, louro, sumo de limão, pimenta, sal, gengibre, óleo de dendê e água. Como receita doce encontramos “Cocadas de Oxum” feitas com açúcar, coco ralado, caldo de limão, gengibre ralado, manteiga e água. Quando se trata de oferenda para Oxum, que se colocam numa pedra junto às águas de uma cachoeira, em termos de alimentos temos bananas e mamão, e de bebidas champanhe e vinho branco. Para uma oferenda especial e um pedido para uma pessoa ser amada a oferenda deve ser constituída por três quindins, uma rosa amarela, uma garrafa de champanhe, uma taça, uma fita amarela, uma vela amarela e uma tigela de louça branca. Nas preferências culinárias de Oxum encontramos manjericão branco, sálvia e erva-doce, batata-inglesa, nabo, cenoura, alcachofra, pimentão amarelo, banana, caju, pêssego, melão, cajá, uva verde, laranja-lima, maracujá, maçã verde, pera e carambola. Não podemos esquecer que os Orixás representam forças da Natureza pelo que é fácil de entender que a maioria das oferendas tenha origem na própria Natureza. Mas Oxum representa a feminilidade, a graça feminina, a água doce dos rios. O omolá (comida de santo), segundo Câmara Cascudo, é a tainha, a cabra, a galinha e o feijão.
Pela mão da Cristina entrei este ano no grupo Afoxé Oxum de Odolá para um Carnaval diferente. Nova, surpreendente e gratificante experiência.
Capa do livro de Ismael Pordeus Jr, editado em Lisboa
© Virgílio Nogueiro Gomes