Sobral foi desde o início a paragem especial desta expedição. E muito especialmente encontrar os Fartes e os Alfenins. Mas não nos limitámos a essa busca. Este dia iria ficar cheio e rico.

Não abdiquei de poder tomar um café expresso que tanto me apoquentava a sua falta. Lá fomos ao único local conhecido que serviam café expresso, no Café Jaibara, no Becco do Cotovelo, rua pedestre com solução estética agradável para nos livrar do Sol que consta ser muito forte. Não tive essa sensação pelo facto de ter chovido com regularidade. O Café Jaibara é uma espécie de instituição local onde se sabem todas as novidades locais. Surpreendido pela pouca qualidade do café logo fui aliviado por ter encontrado, aí, à venda, o livro que tanto tinha procurado: “História de Sobral” de D. José Tupinambá da Frota em edição de 1995. Só por isto já tinha valido apena lá ir.

 

 

 

Partimos para o Museu Dom José. Instalado no palácio que foi residência de D. José. Fomos recebidos pela Diretora, Giovana Saboya, que de forma eloquente nos guiou para toda uma surpresa pela dimensão do museu, e pela quantidade e variedade das suas coleções. Não vou alongar-me pela descrição do museu mas apenas quero afirmar que, pelo museu, vale a pena ir propositadamente a Sobral, ao Museu Dom José. Para além da grande coleção de arte religiosa também se podem encontrar coleções do quotidiano cuja linguagem é, por vezes, mais fácil de entender. Giovana surpreendeu-nos deliciosamente com uma caixa de jabuticaba, a fruta mais invulgar do Brasil. Cresce no tronco da própria árvore, e é difícil de encontrar fresca e nunca a vi servida em restaurantes. Deteriora-se facilmente depois de ser colhida, sendo portanto de consumo quase imediato. Talvez por isso seja mais fácil encontrar sob a forma de compota, de geleia ou até de vinagre. Com um sabor único e refrescante, pouco doce, vale a pena experimentar.

(Jabuticaba)

Giovana acompanhou-nos ainda, quase como salvadora, a uma excelente artesã de Fartes, Dona Tomásia, e que encerra os segredos ensinados pela sua tia Dona Rita Cunha que aprendeu com a sua madrinha Dona Semiramis Nascimento, a grande detentora da receita segundo investigação de Gilmar de Carvalho, cuja leitura me levou a propor esta expedição. Repito que a grande curiosidade dos Fartes resultam do facto de serem mencionados na Carta de Pero Vaz de Caminha enviada a D. Manuel I sobre a descoberta do Brasil. Chegados a casa de Dona Tomásia a conversa foi fácil e doce como os Fartes. Dona Tomásia é clara e precisa: “Os seus Fartes são os melhores”. Ela continua a executar a receita que há mais de cento e trinta anos era executada por Dona Semiramis. E a prova é o fornecimento que faz para famílias que já vão na terceira geração. Só trabalha por encomenda (088 – 3613 2265). E a conversa continua fluída mesmo quando pergunto os ingredientes: para a massa exterior farinha de trigo, manteiga e leite de coco. Para o recheio farinha de mandioca, gengibre, castanha de caju, leite de coco e açúcar. Quando pergunto se utiliza leite condensado recebo um olhar ameaçador e a resposta, categórica, pela negativa. Que bom! Continuo a aplaudir! Depois conta o detalhe de acabamento. Depois de saírem do forno, limpa os Fartes da farinha sobrante, pincela com mel e polvilha com açúcar. Infelizmente não tivemos sorte de provar. Mas gostei do relato. E agora apetece-me escrever um pouco sobre a referência aos Fartes. Claudio Fornari, no seu Dicionário- Almanaque de Comes e Bebes, refere que são ”…bolos que levam creme, ou de pastas delicadas contendo amêndoa e envolvidas em farinha de trigo. Depois remete para a carta de Pero Vaz de Caminha. No Pequeno Dicionário de Gastronomia de Maria Lucia Gomensoro: “Fartes – Doce clássico português, era preparado pelas freiras nos conventos e presenteado à família real e aos nobres, … Foi o primeiro bolo doce trazido para o Brasil, preparado a bordo dos navios,… com calda de açúcar em ponto de fio, amêndoas picadas, cidra em tirinhas, cravo, canela, erva-doce e pão ralado…” Tenho algumas dúvidas que fosse confecionado a bordo, como não seria confecionada também a marmelada, que funcionava como “energético” a bordo. A sempre sábia Maria de Lourdes Modesto, na Grande Enciclopédia da Cozinha, cita os Fartes como “Bolo de açúcar e amêndoas envolto em pão ralado”, e remete para “Espécie” como um doce com açúcar, amêndoa, cidrão, pão ralado, canela, erva-doce e cravinho da Índia. Provei em S. Luis do Maranhão uns “Doces de Espécie” cujo recheio é semelhante ao dos Fartes de Sobral.

 

 

(Fartes de Sobral antes da finalização)

Procurei nos receituários de conventos e apenas encontrei Fartes, ou Fartens, no Convento de Santa Helena do Calvário, em Évora. Estes doces que se assemelham aos contemporâneos, fazem a massa do recheio a partir de um ponto de açúcar, de cabelo, e depois com quase todos os ingredientes e ao conjunto da massa chamam de “espécie”. Depois faz-se o pastel que é frito e polvilhado no final com açúcar e canela. Consultando o dicionário Houais, encontramos como significação genérica “Variedade de doce em que entram amêndoa e açúcar.” Depois remete para uma tradição macaísta de Natal, estes “bolinhos de farinha, ovos e açúcar ou mel, e recheado de coco, amêndoa, pinhão e especiarias…”. Na Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, “Massa doce mais ou menos delicada envolvida em farinha. Nome de vários bolos que contem creme (de fartar).” Conhecer a Dona Tomásia foi outro dos pontos altos de Sobral.

 

 

(Gilmar de Carvalho, Cristina Holanda, Giovana Saboya, Tomásia e eu)

© Foto de Francisco Sousa

(Dona Socorro)

De véspera tínhamos abatido à porta de Dona Socorro. Possivelmente a última artesã a confecionar Alfenins. A conversa com esta Senhora merecia, só por si, uma crónica. Tentámos convencê-la a confecionar Alfenins para podermos degustar no dia seguinte. Fala-nos da dificuldade de atingir o ponto certo do açúcar. Da impossibilidade de assistirmos pois não resulta quando é observada durante a execução. Que o tempo está de chuva e isso influencia negativamente o açúcar. Tudo aceitámos pela terna doçura com que ela conversava connosco. Pareci até emocionada pelo facto de virmos de tão longe para conhecer o seu trabalho. Por fim lá aceitar e que deveríamos voltar no dia seguinte cerca do meio-dia. Que se chovesse não valeria a pena voltarmos. No dia seguinte acordamos com Sol e cheios de esperança nos Alfenins da Dona Socorro. A meio da manhã soubemos que estava a preparar a nossa encomenda. Passadas umas horas começa a chover e ficamos duvidosos por isso. À hora marcada lá estávamos e surge a Dona Socorro com o ar mais triste do mundo, dizendo: “Choveu, choveu…, vejam como ficou o açúcar!” Não sei quem estava mais triste, Dona Socorro ou nós. O ponto de açúcar em bola mole é difícil de manter em temperatura estabilizada para moldar. Nos Açores ainda se fazem Alfenins de forma idêntica. Em Sobral a Dona Socorro aplicar cor seus Alfenins. Pelo meu, eu, fiquei com vontade de lá voltar e fazer uma crónica só com Ela e os seus Alfenins.

 

 

© Foto de Francisco Sousa com os Alfenins de Dona Socorro

 

Já com vontade de voltar a Sobral, regressámos a Fortaleza e, próximos de Fortaleza, em Croatá, parámos na Churrascaria dos Motoristas para lanchar e devorar uns pastéis, à moda brasileira, com quatro variantes: recheados com queijo, queijo e fiambre, galinha e carne bovina. A grande especialidade, ou o seu sucesso, deve-se ao facto de não cozerem no óleo, em fritura, mas cozerem no forno o que lhes dá uma consistência mais seca e mais leve. Uma delícia! Próximos aos nossos pastéis de massa tenra.

 

 

(Pastéis em Croatá)

E terminou esta expedição. Bons passeios e muita gulodice!

 

© Virgílio Nogueiro Gomes