(Como estava o tempo quando chegámos, a Sobral, à praça do "tempo")
Depois de uma noite bem dormida em Tianguá, sentindo ainda os prazeres gulosos da véspera, seguimos para Sobral. Sobral era o grande objetivo para esta expedição. A notícia de que nesta cidade ainda se confecionam os famosos “Fartes”, e os “Alfenins”, levaram-me a querer ver como se preparavam. Quanto aos Alfenins eu já os tinha encontrado em Aquiraz e em Fortaleza. Só que estes, e que se encontram à venda, são confecionados com rapadura, todos apresentados da mesma forma, entrançados, conforme se pode ver na foto.
(Alfenim de rapadura)
Sem ser viciado, a maior saudade que senti nesta viagem foi do café expresso. Confirmado mais um dia sem este prazer, lá fomos à procura de Roberto Pires, herdeiro de sua Mãe da tradição de confecionar Fartes e Queijadas. Os Fartes são os famosos doces que embarcaram nas caravelas de Pedro Álvares Cabral e que chegaram ao que depois se chamou Brasil. Também se chamam Fartéis ou Fartens.
(Fartes acabados de sair do forno)
Admitamos que estes Fartes não são iguais aos que embarcaram pois os ingredientes originais. Digamos que são fruto do que se chama agora de “doçaria de fusão”. Troca-se a farinha triga por farinha de mandioca, a amêndoa por castanha de caju, o cravinho por mais gengibre e, possivelmente, água ou leite de vaca por leite de coco. Os Fartes fazem parte das primeiras receitas escritas portuguesas e coligidas no caderno de receitas da Infanta Dona Maria (1538-1577), escritas bem depois da descoberta do Brasil. Nesta receita, confecionada com mel e sugestão adicional para o açúcar, também entra erva-doce, cravinho, gengibre, pimenta, amêndoas e pinhões. Na conversa com o dono da casa, a quem cheguei pela sábia experiência de Gilmar de Carvalho, discutíamos sobre os ingredientes e forma de confeção, ao mesmo tempo que finalizava os Fartes antes de irem para o forno.
(Fartes a serem preparados, a capa e o recheio)
Um pequeno (grande) detalhe me levou ao desconsolo: a confissão de que por vezes também usa leite condensado. Muito ou pouco assumo esse produto como uma rotura e não uma evolução. Mas sobre isso não vou, agora, escrever mais. Sobre os Fartes, é curioso notar como no Dicionário do Doceiro Brasileiro de António José de Sousa Rego, 1892, são apresentadas quatro receitas de Fartes parecendo-me que os mais próximos são os de “espécies”. A propósito devo referir que dentro desta categoria de doces ainda se preparam na Ilha da Madeira os “Fartes de batata-doce” e as “Espécies” da Ilha de São Jorge nos Açores. Na próxima crónica voltarei aos Fartes executados por outra artesã. Em Sobral, o precioso detalhe de os Fartes ainda cozerem em forno de lenha.
Nas Queijadas também podemos assumir que as atuais são fruto de “fusão”. As queijadas mais famosas de Portugal são as de Sintra, bem historiadas por Raquel Moreira no seu livro “Queijadas de Sintra”. Na sua simplicidade apenas levam quatro ingredientes: farinha triga, açúcar, ovos e queijo fresco. A canela é também usada. Aqui, em Sobral, as Queijadas apresentam-se de forma diferente. A caixa exterior aperta-se sobre o creme como que a formar um bolo homogéneo. Também aqui substitui-se o queijo fresco por queijo coalho. Raquel Moreira afirma que se podem juntar outros ingredientes como o coco ralado, aqui encontrado, a amêndoa e a canela. Para comparar leia-se o livro “Doces Sabores” de Rosa Belluzo e Marina Heck publicado pelo Studio Nobel.
Encontrei nesta casa, Rally, rua Paulo Aragão 938 em Sobral, ainda Sequilhos feitos com farinha Maizena e triga, ovos manteiga, coco ralado leite e açúcar, assemelhando-se muito a biscoitos regionais, Bulinhos ou Bolins como na crónica anterior, Bom-bocado (uma espécie de bolo Luis Filipe em miniatura) e Pão-de-ló. Ora este pão-de-ló tem uma particularidade. É feito em tabuleiro baixo e retangular. Depois é cortado em fatias que vão ao forno (torrar) e depois é enfeitado com glace de açúcar. Não sei se seria este o pão-de-ló a que se refere Gustavo Barroso (1888-1959) na sua obra “O Livro dos Enforcados”, quando nas suas últimas refeições antes do enforcamento elegiam as últimas vontades comendo “pão-de-ló e vinho”, por vezes junto ao cadafalso. De referir que os doces da Rally Pires são apenas vendidos após encomenda.
(Sequilhos)
Terminada esta manhã lambareira, começa a chover e decidimos ir almoçar à Serra da Meruoca, destino refrescante e de lazer nas proximidades de Sobral. Estrada acima e, vendo pouco da paisagem pela quantidade de chuva que caía, abençoada naquelas paragens, parámos no restaurante João Raul e Filho. Queríamos cozinha regional. E lá assentámos, mudando três vezes de mesa pela chuva que nos atingia. Escolhemos por impulso: galinha do campo ao molho e carne se sol, com baião de dois e um excelente pirão.
(Galinha no seu molho)
Durante a tarde ainda tempo para visitar a Igreja de Nossa Senhora da Conceição onde se encontra o túmulo do 1º Bispo de Sobral, D. José Tupinambá da Frota, e grande impulsionador da doçaria portuguesa, e um vulto da cultura sobralense. Ainda tempo para descobrir a morada de Dona Socorro, última artesã de “Alfenins”, cuja conversa ficará para a próxima crónica que afinal ainda há muito para contar.
(Francisco Sousa, Cristina Holanda e Gilmar de Carvalho, meus valorosos companheiros de expedição, à porta da Igreja)
Fomos jantar à casa Aragão que tem fama de confecionar uma carne de sol invulgar depois de ficar de molho em leite. Lá fomos, comemos a carne de sol, muito macia, com baião de dois e salada de tomate e cebola.
(Carne de sol)
Na próxima semana continuação da visita a Sobral, e o regresso a Fortaleza.
© Virgílio Nogueiro Gomes