Debaixo de chuva chegámos a Viçosa do Ceará e fomos diretos à Casa dos Licores onde nos esperavam várias doces surpresas. Como referi na crónica anterior, a programação desta expedição teve a mão conhecedora de Gilmar de Carvalho que nos levava diretamente a locais seus conhecidos, experiências anteriores, e que julgava, certeiramente, que me iriam interessar. Em Viçosa o interesse era duplo, tanto para o património construído como para o património imaterial. Durante a viagem ouvia conversar, entre Cristina e Gilmar, sobre uma Teresa Cristina que estava à nossa espera. Não sei porquê veio-me sempre à lembrança uma personagem sinistra da novela “Fina Estampa”, também Teresa Cristina, cuja comparação, não tem pontos comuns com a nossa anfitriã. Aliviado quando conheci a nossa Teresa Cristina Mapurunga que se revelou o elemento fundamental para o sucesso da nossa visita a Viçosa do Ceará. Somos recebidos nas dependências frontais da casa, local do precioso comércio dos licores, das compotas, das geleias e dos bolos de fabrico artesanal, herdado dos seus Pais Teresa e Alfredo Miranda que iniciaram o negócio. Esta casa é um oásis na cidade.
(Teresa Cristina entre os licores)
Se a entrada nos deixava curiosos, eu a ler todos os rótulos, a surpresa maior surgiu ao entrar casa dentro. As paredes cheias de recordações, não faltavam fotos do Senhor Alfredo Miranda que também foi um grande artista musical, tendo gravado um CD com repertório variado de choros, xotes ou mazurcas tocando o seu “pife”. A casa parece um museu vivo, e quando nos aproximamos do final do corredor, surge Dona Teresinha, Mãe de Teresa Cristina, que nos convida para lanchar. Perante nós, uma mesa cheia de bolos, chávenas para café, e uma fascinante taça grande de “arroz-doce” feito expressamente para nós. Senti-me “teletransportado” para outros tempos, e outros locais, em atitude hospitaleira transmontana, naturalmente. Fartura e sentimento prazenteiro. Mas antes de nos sentarmos à mesa não resistimos a fazer uma visita detalhada à cozinha mais elegante dos últimos tempos. Cozinha onde se sente que passaram gerações de artistas dos gestos, e dos sabores. Porque os gestos também são um saber. Digo muitas vezes que não tenho problemas em dar receitas. Há dois detalhes que não se sabe como colocar em escrita: os gestos e o fogão.
Dois fogões como que em instalação artística. Só que aqui, a arte, são os produtos confecionados. Depois de assistirmos ao funcionamento a lenha de um dos fogões, Dona Teresinha ainda nos quis mostrar as suas artes.
(Dona Teresinha ao fogão)
O olho já tinha ficado naquela mesa farta onde, para além do Arroz-doce, também tínhamos um Bolo de milho, um Bolo de macaxeira, um Bolo fofo e uma invulgar Rosca de queijo, também chamada de Rosca de goma. Esta Rosca de queijo, que não é doce, é confecionada com goma de mandioca, ovos, óleo de babaçu (uma qualidade de palmeira) e leite. Fez-me lembrar a consistência, e sabor, do nosso “bolo de chouriço”.
(Fatia da Rosca de Queijo)
Ainda havia, no grupo de biscoitos, Petas, nome curioso que, como em Portugal, quer dizer mentiras, confecionadas com goma de mandioca, ovos e vai-se juntando água até obter a consistência desejada; Bolins de nata, confecionados com goma de mandioca, açúcar, natas, ovos e fermento; e Sequilhos também feitos com goma de mandioca, açúcar e coco ralado.
(Petas)
(Bolins)
(Sequilhos)
(Arroz-doce)
Sentados à mesa, e sentido o cheiro doce que nos vinha do arroz-doce acabado de fazer, não resisti a fazer uma pergunta fatal sob o olhar ameaçador dos meus parceiros de expedição: Teresa Cristina, usa leite condensado no arroz-doce? Ao que felizmente respondeu de forma categórica: “Nem pensar, aqui faz-se tudo de forma tradicional!” Como fiquei satisfeito com esta resposta! Até me apeteceu bater palmas. Claro que seguidamente houve uma ligeira conversa com unanimidade de opinião sobre o facto de não se dever utilizar leite condensado nestes casos. Por isto já me parecia ter “ganho o dia”. A utilização do leite condensado não tem nada a ver com a evolução ou modernidade. O leite condensado significa para mim uma rutura e que transforma todos os doces a ficarem com o mesmo sabor. Bem, voltemos ao nosso repasto. Lá provámos todas as iguarias. Confesso que tive dificuldade em identificar os doces correspondentes em Portugal. Tanto as Petas, como os Bolins de nata, como os Sequilhas me lembram biscoitos regionais portugueses e fáceis de encontrar em romarias de verão.
(Parte da mesa)
A conversa animou quando a nossa anfitriã nos falou das suas Compotas com trinta sabores e, espantem, as Geleias com cinquenta sabores. Fez a pergunta se todos sabíamos o que eram Geleias e como eram feitas. Coube-me, com orgulho nacional e transmontano, contar como eram também feitas em minha casa e em especial a de marmelos, possivelmente a mais subtil. A função da pectina existente na pele e caroço de algumas frutas. A variedade de frutas do Brasil permite ir mais longe e, aqui, a especialidade da casa são os diferentes setenta e quatro licores! AH! Ainda confirmado pela dona da casa que é uma herança portuguesa. Todos estes produtos podem ser testados, provados, antes de os adquirir.
Claro que a conversa continua sobre a fundação de Viçosa, desde Aldeia de Nossa Senhora da Assunção de Ibiapaba, a Aldeia da Serra de Ibiapaba, e depois da expulsão dos jesuítas em 1750, passou de Vila Viçosa Real em 1759, depois Vila Viçosa Real da América… e agora Viçosa do Ceará. Por aqui também passou o Padre António Vieira. Consta que com a expulsão dos jesuítas, que marcaram fortemente a povoação, quiseram homenagear a localidade onde tinha sede a família de D. José, que é Vila Viçosa, uma histórica cidade no Alentejo. Mas dos jesuítas herdaram o que é hoje a majestosa Igreja Matriz de Nossa Senhora da Assunção, onde encontrei nos famosos tetos uma invulgar pintura legendada como “Paladar”.
(Paladar)
No início da crónica referi a importância do património construído como do património imaterial. Antes da visita à Igreja, e no mesmo edifício visitámos o espaço e espólio do que será um memorial de Viçosa e da Irmandade local, agora já acompanhados por Gilton Barreto, um estudioso e memorialista de Viçosa. No seu excelente livro “Viçosa do Ceará sob um olhar histórico” apresenta a história da localidade, do seu património construído e especialmente das pessoas. As pessoas constituem o melhor património de um local, ou de um facto histórico. Teresa Cristina é também a grande dinamizadora da instalação do Memorial. Regressámos à Casa dos Licores onde provámos alguns, e ainda tempo para umas bolinhas de doce de buriti (uma variedade de palmeira).
(Bolinhas de Buriti)
(Licores para provar)
Preparados para partir, ainda uma tentativa para ver a Igreja do Céu mas a tempestade, ou porque as forças não nos acharam “dignos de chegar ao Céu”, foi tão forte que nem conseguimos sair do carro. Sob chuva lá seguimos para Tianguá onde jantámos e pernoitámos. Na próxima crónica, as aventuras em Sobral.
(Francisco Sousa, Gilmar de Carvalho e Cristina Holanda, meus parceiros de expedição, comendo uma reconfortante sopa, em final de dia)
© Virgílio Nogueiro Gomes