(Natureza Morta em Interior de Cozinha com Legumes, 1651, António de Pereda y Salgado, 1611-1678, a ver no Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa)
Mais um produto fundamental na cozinha portuguesa e, desde o século XVIII, parece não mais o termos deixado. Amado por uns, incómodo ou intolerado por outros, parece lendariamente proteger dos vampiros. Para nos alegrar, vale a pena ver, ainda, o filme de Roman Polanski “The Fearless Vampire Killers”, 1967, cujo título em português é “Por favor não me morda o pescoço”, no qual se vêm bem essa função. Pena que os alhos não nos protejam, agora, dos vampiros que nos entram nas carteiras!
Nas artes plásticas não são muitas as referências. Podemos ver no Carnegie Museum of Art, Pittsburgh, uma pintura de Jean-Baptiste Siméon Chardin, 1760, uma “Natureza Morta com um Copo de Água e uma Cafeteira” com três alhos em primeiro plano, e no Museu do Louvre, Paris, um quadro de Gerard Dou, 1647, intitulado “Mercearia de Aldeia” no qual, ao lado de especiarias do Oriente, surgem alhos e outros produtos da horta. Outra pintura notável é a de Jacopo da Empoli, “Natureza Morta em Interior de Cozinha”, 1624, na galeria dos Ofícios em Florença. Em Portugal, no Museu Nacional de Arte Antiga em Lisboa, uma pintura de Antonio de Pereda y Salgado (1611-1678), “Natureza Morta em Interior de Cozinha com Legumes”, 1651, com alhos evidenciados a tombar da mesa.
Voltando ao consumo de alho, encontramos várias referências que o consideram como elemento precioso no Antigo Egito, pois o alho daria força aos construtores das pirâmides. Também da Antiguidade na Grécia surgem citações de muita utilização do alho. Na Antiga Roma, o alho adquire tal importância, que é consagrado a Marte, divindade de feitio agressivo e colérico. Assim eram atribuídas qualidades ao alho relacionadas com a força, e que inclusive matava os vermes. Este atributo de força renova-se durante a Renascença e é utilizado nas experiências mágicas da alquimia. É a partir deste tempo também que se utiliza para aclarar a voz quando misturado com mel. Da Bíblia já nos vinha o ensinamento de como o alho representava a corrupção do espírito e que ajudava a desenvolver o pecado. Talvez por isso, durante a Idade Média, se expõem alhos no exterior das portas para afastar o mal, e que também afastaria serpentes e escorpiões. Desta tradição virá também o sentido de afastar os vampiros. No entanto, eram atribuídas ao alho qualidades afrodisíacas, talvez por associação às forças do mal ou do pecado. É desse tempo também a convicção, e que hoje ainda constatamos, de que quanto mais se come mais difícil será a digestão. Questões mais graves estão relacionadas com o mau hálito de quem come alhos. Afonso XI, rei de Castela, proibiu, em 1330, de frequentar a Corte quem comesse alho e cebola! Por todas estas razões, o alho foi sempre associado a uma certa rusticidade e ainda à proteção contra o mal ou o pecado.
Foi necessário esperar pelo século XVII para que o alho triunfasse na cozinha devido às suas “intensivas qualidades gustativas”. É vulgar, pois, aparecer no arranque de muitas receitas, nos estrugidos ou refogados, e começa a aparecer em várias receitas como elemento fundamental e surgem-nos, então, as “alhadas”, que em gíria popular continuam a significar problemas ou complicações.
Genericamente chamam alho tanto para o bolbo, cabeça de alho, composto por folhas escamiformes, como para os designados dentes de alho. Desde sempre conhecido pelas suas funções medicinais como também elemento de base na alimentação. São conhecidas muitas variedades de alho, e muitas vezes identificadas no mercado como “das vinhas”, de Espanha, de França, da Alemanha, do Brasil, do mato, mágico, comum (allium sativum), rosado, sem mau cheiro e silvestre.
Na cozinha tradicional portuguesa a presença do alho é fundamental na “Açorda Alentejana” e nas restantes “Açordas”, na “Alhada de Cação”, em muitos escabeches e em quase todos os refogados ou estrugidos. Surge também para saltear legumes, exemplo dos grelos ou do feijão-verde, e também em muitas saladas. O alho parece ter nascido para acompanhar o bacalhau, ao lado do azeite, em tantas preparações. E lá diz a cançoneta: “O bacalhau quer alho!”. Curiosamente ainda encontramos no Ribatejo um “Arroz de Alhos” e o alho entra, também, em confeções delicadas como nas “Ameijoas à Bulhão Pato” e na “Lagosta Suada à Moda de Peniche”. Há ainda quem afirme que as Alheiras devem o seu nome pelo caldo que ensopará o pão e confecionado também com alho…
Alain Ducasse, no seu livro “Dictionnaire amoureux de la cuisine”, 2003, escreve e eu traduzo: « É uma honra, e um prazer, render homenagem ao patriarca de todos os condimentos ! Desde sempre o alho triunfou em todo o Mediterrâneo”… “Na minha cozinha, o alho exerce um papel de estrela.”
Jean-Marie Amat, chefe de cozinha, e Jean-Didier Vincent, biólogo, no interessante livro de ambos “Pour une Nouvelle Physiologie du Goût », e a propósito da Sopa de Alho espanhola, afirmam: “Como podes sentir, o amargo do alho e do azeite domina, mas sem o caráter repulsivo e ameaçador deste sabor. A acidez faz contraste e apresenta o caráter inocente desta preparação. Este é mais um exemplo de flexibilidade do alho nas confeções culinárias.”
Outros países deram-lhe, também muita importância. Desde o molho “Aioli”, de origem francesa, que é espesso como a maionese e apenas confecionado com alho, ovos e azeite, muitas vezes a acompanhar peixe. Este molho é já considerado um clássico em culinária. Também os espanhóis têm a habilidades de fazer umas conservas de alho que são fáceis de consumir sem ficar com o “desesperante” hálito.
Saber escolher um vinho para acompanhar um prato com evidente sabor a alho não é tarefa fácil. O que é obvio é que acompanhar esta comida com vinho, saberá sempre melhor.
© Virgílio Nogueiro Gomes