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Apesar de ser menos utilizada, continua a ser usada a expressão “comida de hotel” com sentido depreciativo para a comida. Porquê?

Já estamos muito distantes dos relatos que vou citar. E foi em junho de 1484 que Nicolaus Von Popplau, um nobre da Europa Central partiu de Viena para uma viagem até Portugal. Nos seus relatos de viagem conta como viajou de Valença até Ponte de Lima, passando depois por Barcelos até chegar ao Porto sempre por via terrestre. Do Porto a Lisboa viajou de barco e depois deslocou-se até Setúbal, onde se encontrava o Rei D. João II, e com o qual pensava ter um encontro. A estratégia para esses seus intentos foi enviar um dos seus servidores, que falava espanhol, para falar com o cozinheiro do Rei, que seria flamenco. Esta estratégia foi-lhe sugerida por lisboetas e importantes negociantes que lhe confiaram ser esta a melhor forma de chegar até ao Rei. Podemos deduzir que haveria uma proximidade do cozinheiro ao seu Rei motivada, possivelmente, pelos prazeres da mesa. Mas o nosso visitante gostaria de incumbir ao cozinheiro a tarefa de lhe encontrar alojamento, tarefa difícil, naquele lugar, e em pleno verão mais propriamente a 12 de agosto. Conta nas suas crónicas que o alojaram num estabelecimento que ele regista como “Stallasum” que em minha opinião seria uma estalagem da época pois não havia hotéis, e ainda por cima teria que cada um confecionar as suas refeições, sempre com acidentes e incidentes complicados para quem não fala a língua. Lá lhe mandou o cozinheiro mensagem que o Rei o “recebia depois de comer”. Estas citações são um pretexto para mostrar como a comida era um marco do quotidiano. O Rei parece ter feito justiça e mandou gente do palácio acompanhá-lo ao albergue e mandou para a prisão a dona do albergue e o seu pessoal “mesonero” (que assiste às mesas). Não havia nos finais do século XV hospedaria de referência, não impedido Popplau de nos comparar com os ingleses, escrevendo que os portugueses “são nas comidas e bebidas mais moderados”, sem eu saber muito bem o que, com isto, quer dizer. Descreve ainda a sua viagem até ao Algarve, Madeira e Cabo Verde. Quanto à alimentação centra-se sobre a alimentação real e faz supor que, para sua sorte, para comer nos albergues, é salvo pelos os seus serviçais que o acompanham nas viagens. Não havia ainda, neste tempo, hotéis.

Mais tarde, em 1786, J. B. F. Carrère, escreve curiosamente sobre as hospedarias, e comida em Lisboa. Transcrevo diretamente a tradução de Castelo Branco Chaves: “…paredes negras, mesas ensebadas, cadeiras desengonçadas, uma cama nojenta, são os objetos que se lhe oferecem. Se sai deste antro, topa uma cozinha suja, vasilhas porcas, trem de cozinha mal cuidado, quatro caçarolas ao lume e um cozinheiro repelente. Chega a hora da refeição: uma toalha com oito dias de serviço, um garfo de ferro ferrugento e gorduroso, pratos rachados ou esbeiçados, sopa aguada, guisado a tresandar a fumo, com molho só temperado com sal, um assado duro, seco, queimado, vão sendo postos na mesa, que está tão suja como o chão em que assenta.” E continua escrevendo que “Em Lisboa há muitas hospedarias, mas nenhuma é boa. Numas, as refeições são em mesa redonda, a preço fixo; noutras, come-se o que se pedir, pagando-se consoante os pratos escolhidos… as comidas são grosseiras, muito ordinárias, raramente bem temperadas.” Ora nesta descrição encontramos uma expressão que, possivelmente, deu origem à expressão “comida de hotel”: mesa redonda. Mas não é ainda a qualificação destas hospedarias que lhe atribuem àquela expressão o sentido negativo de qualificação.

É, no entanto, William Morgan Kinsey, em 1827, faz os relatos mais arrasadores da qualidade das refeições nas estalagens e hospedarias. Também não me parece ter sido esta constatação que criou a expressão. Teremos que esperar, para o brilho das refeições em hotel, por 1864, quando João da Mata se estabelece com o seu primeiro hotel, na rua Garrett, depois de ter tido a glória com os anteriores restaurantes. Seguiu-se outro hotel no Largo do Chiado, e depois o Grande Hotel da Mata, no antigo Palácio do Calhariz, que ostentava o seu nome como garantia de forma superior de servir refeições. Ainda abriu o Grande Hotel de Lisboa na avenida da Liberdade 55. Com João da Mata tivemos seguramente os primeiros restaurantes de excelência em hotéis, e ainda não foram estes hotéis que deram origem à imagem negativa do conceito de “comida de hotel”.

Nos finais do século XIX surgem os grandes hotéis de luxo, os palaces ou palácios, cujos exemplares de maior conforto e eficiência de serviço se encontravam na Suíça, Áustria e Alemanha. Em Portugal suje o Palace Hotel do Buçaco que desde o início se afirma como local de alta gastronomia. Por esta época surgem também os grandes hotéis de termas, que habitualmente serviam refeições “mesa-redonda”. Depois da primeira guerra mundial, começa crescer o hábito de viajar e incrementa-se a instalação de hotéis. Em simultâneo desenvolvem-se os hotéis de praia, com épocas especiais de frequência. Para dinamizar o consumo interno nos hotéis suje o conceito de meia-pensão e pensão-completa. Estas refeições afastam-se do serviço à carta, confecionadas em grande quantidade. Possivelmente foram estas refeições que criaram a expressão “comida de hotel” e não expressa, de facto, a imagem dos hotéis nos finais do século XX. E temos o exemplo do desaparecido Hotel Aviz que à frente da sua cozinha teve o famoso Chefe João Ribeiro. Hoje em dia temos hotéis que são verdadeiros emblemas da alta, e melhor, cozinha que se faz em Portugal. Por isso é errado continuar a expressão “comida de hotel”. E vou apenas citar alguns hotéis da zona da grande Lisboa para provar isso mesmo. Desde o Hotel Fortaleza do Guincho, ao Hotel Sheraton com o restaurante Panorama, o Hotel Ritz que tem o melhor buffet que se faz em Portugal e um excelente serviço à carta, o Hotel Tiara com o restaurante L’Apparat, o Hotel Bairro Alto com o restaurante Flores, o Hotel Tivoli com o restaurante Terraço, o Hotel Altis Belém com o restaurante Feitoria, … e muitos mais que seria impossível aqui enumerar. O que eu gostaria é que se eliminasse a expressão “comida de hotel” pois é uma realidade ultrapassada. Hoje em dia muitos hotéis, diria a maioria, têm serviço à carta, e cozinha de qualidade. Quando viajo, em estrada, se há um hotel prefiro aí fazer as minhas refeições. Há pequenos confortos que sabem bem: guardanapos de pano, ambientes tranquilos sem cheiros a fritos, ou barulhos… E não podemos esquecer que, em Portugal, a grande maioria de estrelas Michelin estão atribuídas a restaurantes de hotel. Inclusive os únicos dois restaurantes com duas estrelas estão integrados em hotéis.

O que motivou esta crónica foi que, no intervalo de uma semana, fiz três refeições muito boas em três hotéis. Vejam as fotos e as legendas.

© Virgílio Nogueiro Gomes

 

Bacalhau escalfado com ervilhas, chouriço e bochechas

Restaurante Flores, Bairro Alto Hotel

Chefe Vasco Lello

Garoupa corada com Brás de tomate seco

Restaurante Terraço, Hotel Tivoli Lisboa

Chefe Adelaide Fonseca

Os Citrinos, A Amêndoa e a Ginja

Restaurante L'Apparat, Hotel Tiara Park Atlantic, Lisboa

Chefes Eddy Melo e Luís Ascenção

BOM APETITE!