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Tenho memórias inesquecíveis sobre peixes e a forma como fui educando o gosto em relação a eles. Primeiro conheci peixes do rio, trutas e bogas, depois dois produtos que não eram peixes, bacalhau e polvo, e só depois os peixes do mar, começando pela pescada, corvina, sardinha e congro. Mas eu nasci e cresci na província, e ainda bem. Peixe de mar significava uma chegada especial do Porto, ou de Matosinhos, ou uma viagem a Espanha para comer o peixe já confecionado, e são as minhas surpreendentes experiências de restaurantes, enquanto criança. Mas o peixe estava sempre associado a outras questões do quotidiano, ou economia caseira, como a presença obrigatória durante o período quaresmal, ou pelo menos às sextas-feiras, por doença, ou pela necessidade de consumo quando havia chegadas de peixe fresco. Para os outros dias sempre tínhamos o bacalhau, e o polvo.

Para entendermos a dimensão de consumo de peixe em Portugal, além do facto natural da nossa costa o fornecer, temos que reconhecer que alguns do povos que habitaram estas terras já tinham uma tradição enraizada de consumo de peixe. Dos fenícios aos cartagineses e dos romanos que nos deixaram alguma herança mesmo em receituário associado à transformação e conservação. Naturalmente, como já referi, que a nossa costa com a qualidade excecional dos seus peixes, contribuiu para uma maior fixação de hábitos de consumo. Depois, Portugal já consolidado como País e a sua submissão à Igreja, as imposições que lhe eram impostas ajudam a fomentar e cimentar os hábitos do consumo de peixe. E o peixe tão fácil, mas quantas vezes tão sofrido pelos temporais e acidentes no mar. Temos, a partir do século XIV, o caso do bacalhau que deixarei para outra crónica e portanto não o voltarei a citar. Agora ainda lembrar que os primeiros cristãos sempre comeram peixe fresco, e aprenderam a conservá-lo por secagem ou salmoura. É sobejamente conhecido o milagre da multiplicação do pão e do peixe e, este facto, ajudou a considerar o peixe como um símbolo dos cristãos. Consta que a partir desse momento o peixe começa, também, a simbolizar Jesus Cristo como filho de Deus salvador. Era igualmente hábito, os primeiros cristãos, identificarem-se através da representação de um peixe, por vezes desenhado sobre a terra, e facilmente apagado. Depois é ver a importância que teve na pintura da Idade Média e da Renascença. Grandes pintores como Juan de Flandres, Jacopo Bassano, Leonardo da Vinci, Velàsquez, Georg Flegel e mais tarde Édouard Manet, apenas para citar alguns exemplos. Em Portugal apenas vou citar uma excelente natureza morta, atribuída a Baltazar Gomes Figueira, século XVII, no Museu de Évora, que apresenta uma figuração de valor com seis variedades de peixe. Mas o melhor exemplo do peixe como arte, e de valorização do nosso peixe, é o famoso banquete que D. Sebastião ofereceu a seu tio e Rei de Espanha, D. Filipe II, que ficou na história pela variedade e qualidade e que valeu a citação no discurso de seu tio: “O certo é que o Rei meu sobrinho é o Senhor dos mares”, como consta na crónica de Diogo Barbosa Macedo.

Vejamos, por ordem alfabética, as principais variedades de peixe de mar que encontramos em Portugal: anchova, atum, besugo, carapau, cavala, charroco, cherne, corvina, dourada, espadarte, faneca, garoupa, goraz, imperador, linguado, pargo, peixe-espada, peixe-galo, pescada, pregado, raia, robalo, ruivo, salmonete, safio, sardinha, solha, tainha e tamboril. Em 1936 foi publicada no livro “Culinária Portuguesa”, de António Maria de Oliveira Bello, uma curiosa tabela com os meses em que os peixes têm melhor sabor. Esta tabela foi elaborada tendo em conta a temperatura das águas e, especialmente, o período de desova dos peixes. Hoje pouca se fala sobre este indicador, mas todos sabemos que a sardinha é melhor a partir de junho e, por isso, o emblema gastronómico das festas populares de Santo António, São João e São Pedro. 

Quanto à forma de os confecionar, encontramos nas cozinhas regionais quase todas as técnicas culinárias. A esse propósito não resisto em transcrever, em tradução livre, o que escreveu Christian Millau sobre a confeção dos peixes: “O inimigo nº 1 do peixe é o cozinheiro”, e dá vários exemplos de eliminação do sentir do peixe, para depois escrever que: “Felizmente há o estado de graça que lhe atribuem os verdadeiros cozinheiros de peixes do mar que, eles, compreenderam que a melhor forma é a simplicidade…”. Ou ainda como escreveu Xabier Gutiérrez “Cocinar lo menos posible”. Pois é, o peixe sente-se bem, e sabe melhor quando é cozido ou grelhado. E é ver o grande sucesso das vilas e cidades piscatórias com os seus restaurantes com as grelhas à vista, e o peixe a grelhar na brasa, ou assar como se diz na região de Setúbal. O peixe pode comer-se cru, quer dizer sem cozedura, muito embora a tradição portuguesa não tenha exemplos. Este gosto aumentou com a proliferação do “sushi” e “sashimi”. É por vezes agora também apresentado sob a forma de carpaccio. Depois vem o peixe cozido, lamentavelmente associado a comida para doentes, que pode ser em água simples ou como os franceses notabilizaram “en court bouillon”. Também se pode considerar cozido quando é escalfado, cozido a vapor e, com as novas técnicas, cozido em vácuo. Ainda neste grupo podemos considerar a cozedura a frio quando é deixado em repouso em líquidos ácidos como o sumo de limão ou vinagres. Uma novidade é o cozimento a frio, conhecido como “cryo cooking”. Outra forma é estufado, e algumas vezes guisado. Uma forma muito divulgada é a fritura que se desenvolveu com o sentido de conservar pois um alimento confecionado teria um período útil mais longo. Muitas vezes depois de frito o peixe, cobre-se com molho de escabeche e dois dias depois é um prato excelente. Assar no forno é uma especialidade portuguesa e de encanto. Fica quase para o fim o grelhar, que para mim é a melhor confeção para apreciar a frescura e consistência do peixe. Hoje em dia tem-se muito cuidado com o tempo de grelhar pois o peixe deve ficar com a sua humidade e não muito seco que destrói o peixe. Depois ainda encontramos o peixe que coze embrulhado em papelote, em massa de pão, ou em sal. Consideram-se ainda na nova cozinha, e com a preocupação de lhe dar uma cozedura exata, a cozedura unilateral ou a selagem que já nos tínhamos habituado a fazer para a carne. Poderemos ainda considerar a fumagem, que lhe transmite uma cozedura, mas que a prática se desenvolveu com intuitos de conservação, com poucos exemplos para além do espadarte.

Vejamos agora como a cozinha portuguesa reage a estas formas de confeção. Peixe assado ou grelhado temos por todo o País. Há peixes como a atum e o espadarte, habitualmente servidos como bifes, e por vezes com cebolada, aparecem numa nova cozinha portuguesa, apenas selados e, ainda bem, quase crus no seu interior. A evolução do gosto permite que cada vez mais assim se sirvam e assim se possa sentir bem o gosto do peixe. Naturalmente que continuaremos a ter na Madeira o atum assado ou de escabeche, bem como atum salpresado. O Algarve irá continuar também com os bifes de atum de cebolada ou de tomatada. Nos estufados temos a grande variedade de caldeiradas em toda a nossa costa. Mas nos estufados, e associado a uma estética à mesa, um emblema nacional que é a cataplana. De guisados pouco direi, até porque a prática e inventário de receitas é curto, mas não esqueço os guisados de congro transmontanos, que em minha casa também se fazia de fricassé. Assado no forno especialmente o goraz ou a garoupa bem regada com azeite, e com tomate e cebola. Mas no forno também se faz a pescada à portuguesa. Continuando na pescada, e talvez a receita mais popular, é a pescada à poveira. Antigamente era hábito fazer em Lisboa a dourada assada no forno, prática que se está a perder. Outra receita lisboeta que entrou em desuso é a pescada salmão. Curiosamente, Olleboma, considerava que a sarda ou cavalas cozidas eram um prato nacional. Alguma cozinha nova está a recuperar estes peixes que durante umas décadas foram considerados menores. Recheados de nome, são os linguados com camarão à moda de Lisboa, e a garoupa dos Açores. Sobre a sardinha, grelhada na brasa em maioria, também se frita, e fazem-se uma famosas “costeletas” de sardinha de tradição minhota. De sardinha se fazem ainda umas bolas na região de Viseu e Marco de Canavezes. Possivelmente as primeiras foram com o intuito de conservação do peixe, e que possivelmente deu origem ao peixe que se assa no forno envolto em massa de pão. Os carapaus também têm marcas. Além de grelhados, assados no forno na Beira Baixa, e os mais famosos que são os “alimados” do Algarve. Especial é a raia, que para além de enriquecer muitas caldeiradas, é confecionada à moda de “pitau”. É cozida e o nome advém-lhe do molho que acompanha, feito com os fígados da raia. Quase a terminar, a excelência dos salmonetes que, grelhados ou assados, recebem o nome de à setubalense depois de cobertos com um molho de manteiga com os fígados dos salmonetes.

A lista ficaria interminável se citasse todas as receita-as portuguesas dos nossos peixes de mar. O que importa é consumir o peixe, pela nossa saúde, e para nosso prazer. Os pescadores também agradecem. E perceber que se deve eleger a forma de o confecionar de modo a que possamos apreciar melhor as suas qualidades, não o estragando. Aprender a respeitar as suas qualidades. Eu opto muito pelo grelhado, e pelo cozido. Pelo sucesso do “Peixe em Lisboa” podemos acreditar no bom gosto alimentar dos portugueses. E depois não esqueçam que todos os peixes saberão melhor se acompanhados por vinho.

Ah! Não esqueçam que “temos o melhor peixe do Mundo”. Pelo menos, pelo peixe, melhoremos a nossa autoestima.

© Virgílio Nogueiro Gomes