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Tenho que confessar que decidi escrever, esta crónica, inspirado por duas leituras: primeiro o texto e ilustração de Pedro Cabrita Reis para o livro “Na Cozinha dos Artistas” editado pelo Centro Cultural São Lourenço, Almancil, em 2007, e depois pela publicação de dois opinantes diferentes da revista Gosto nº 15 de outubro de 2010.

Não há criança que não tenha lembranças de comer pão com manteiga. Ao pequeno-almoço, ao lanche, nas merendas de passeios, e muitas vezes antes de deitar. Fui educado a comer pães de mistura e muitas vezes de centeio. O milho raramente aparecia. Mas os pães da minha infância tinham outros sabores. Raramente comia o papo-seco ou “biju”. Antes preferia o pão de fatia ou então o pão escachado, em forma de rim ou o “três tetas”, assim chamado pois era como três papo-secos unidos. Só que a massa era diferente, mais compacta e possivelmente com menos fermento. Mas gostar mesmo era o pão de centeio. Em minha casa apenas se comia pão com manteiga naquelas leves refeições. Nunca em almoço ou jantar havia em simultâneo pão e manteiga, prática a que só vim assistir quando comecei a frequentar restaurantes. E é dessa prática que me apeteceu escrever sobre este assunto: pão com manteiga antes das refeições sim ou não.

Como referi no início desta escrita, a revista GOSTO tem uma secção “Gosto se Discute” tendo como tema no número 15 “Deve-se comer pão antes da refeição, acompanhado ou não de manteiga?” Para responder a favor podemos ler a resposta de Dom Eudes de Orleans e Bragança e voto contra Braulio Pasmanik. No texto a favor constatamos que o autor defende que o pão é o melhor “coadjuvante” de uma refeição, recomendando no entanto que não se deve ingerir em grande quantidade para não perder o apetite. Defende ainda que o pão é o melhor elemento alimentar “separador” de paladar entre pratos. Mas o grande elogio do pão na refeição vai para a função de “apreciar” os restos dos molhos que ficam no prato, podendo com a ajuda do pão “raspar” fazendo limpeza ao prato. A este propósito perguntaram-me recentemente se achava polido ou elegante fazer uma “sopinha” com o pão nos restos dos molhos nos pratos ao que eu simplesmente respondi que esse ato era uma homenagem à cozinha. Talvez não precisasse de o fazermos se a dose fosse ligeiramente superior. O opinante do não começa por afirmar que “pão e manteiga formam uma das mais sensacionais parcerias”. No entanto discorda que num restaurante lhe depositem de imediato pão e manteiga pois a dupla tira a fome afirmando que “se estivermos famintos e o pão for bom, tomará o lugar da comida”, indo mais longe com a proposta de, terminada a refeição, se continuar com fome então que tragam “uma cestinha de pães”.

Pedro Cabrita Reis faz-nos uma descrição requintada e detalhada sobre o que deve ser uma fatia de pão com manteiga desde a produção do pão, recomendando a lenha ideal, os tempos, as observações minuciosas em todas as fases, por vezes com frases quase poéticas como sobre os “sabores que se desprendem desta manteiga que preguiçosa e viciosamente se vai espalhando sobre a fatia…”. E termina escrevendo que “apenas estas fatias, assim cortadas com esta espessura e montadas, mais que barradas, sobre o pão, poderão levar-nos à experiência única que é de forma assaz singela proporcionada pelo saborear lento e inspirado de uma fatia de pão com manteiga.” Vale a pena ler o texto na íntegra que é acompanhado de desenhos do autor.

Bem, eu abdico de pão com manteiga antes da refeição. Mesmo quando já estou com fome. Só não resisto se o restaurante está com o serviço muito demorado, ou quando a execução culinária não satisfaz. Neste caso como pão com manteiga mas não volto. Em minha casa não se serve pão com manteiga às refeições. O pão aparece discretamente para aqueles que não prescindem da sua utilização.

Mas voltando à minha vivência transmontana quero lembrar o pão que me sabia melhor que era o de centeio, e que durante o inverno fazíamos com ele torrado na lareira e barrávamos com banha de porco. Mais tarde vim descobrir os prazeres da manteiga de ovelha. Nunca me souberam bem as margarinas… O pão com manteiga era um entretém dos intervalos das refeições. Libertemos a nossa boca para apreciar melhor as iguarias principais. Nunca sinto a falta de “couvert” nos restaurantes que habitualmente frequento e, por isso, têm a gentileza de não o colocar na mesa.

Numa refeição habitualmente posso dispensar as entradas. Serão obrigatórias as “saídas”. Quer dizer, as sobremesas. Quando não como sobremesa parece-me uma refeição incompleta.

© Virgílio Nogueiro Gomes

Maio 2011