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Parece evidente, ou sem sentido, esta pergunta. Claro que todo a gente usa, hoje em dia, todos os talheres e os conhece a quase todos. Isto porque há talheres muito específicos para certas iguarias e apenas utilizados em restaurantes especializados. Mas irei refletir sobre os talheres mais comuns, e mesmo esses perturbam ainda alguns frequentadores de estabelecimentos de restauração.

É fácil entender que a faca terá sido o primeiro instrumento a surgir. Depois terá chegado a colher, mas muito mais tarde e quase surgindo como um objeto sofisticado. Quanto tempo a distancia da utilização da faca? Segundo Pancracio Celdrán poderemos ter um milhão de anos de intervalo. E a colher, no seu formato inicial, assemelhar-se-ia a uma pequena escudela com cabo. Depois terá sido aperfeiçoada até ficar com a forma atual. No início o cabo da colher seria pontiagudo, e assim, ajudar a segurar a partes sólidas da comida e desempenhar algumas funções do garfo.

Apesar de terem sido encontradas colheres em buscas arqueológicas que datam do Neolítico, consta que terão sido os egípcios a difundir e generalizar a sua utilização. A colher transformou-se também em utensílio artístico, bastando ver a forma como alguns cabos foram esculpidos. Vamos encontrar colheres de ouro, prata e também em marfim, entre a civilização grega. Damos um salto até à Idade Média onde encontramos referências aos nossos talheres, ou instrumentos da mesa. As colheres faziam-se do osso, estanho, prata e ouro. E no capítulo ourivesaria vamos encontrar, até recentemente, as colheres de prata oferecidas aos recém-nascidos que no cabo teria como decoração o nome, ou imagem do santo a que correspondia no nome.

Mas o instrumento que mais veio revolucionar a mesa foi o garfo. Apesar de seu uso recente, não se sabe fixar com exatidão a data do seu aparecimento. Se pensarmos no termo espanhol, tenedor, entendemos melhor, como este instrumento de cozinha chegou até à mesa. Sabemos, no entanto, que em escavações arqueológicas na Turquia asiática (Çatal-Huyuk) foram encontrados utensílios que se assemelham a garfos de cozinha, com pelo menos quatro mil anos. Certo é que será na cozinha que vão nascer os garfos, dada a necessidade de ter um instrumento para pegar ou segurar as peças de carnes. Por isso referi que o termo espanhol nos leva à sua primeira função. O pão serviria como o apoio para o corte individual e a ajuda para levar a comida à boca. Os garfos de cozinha teriam inicialmente dois dedos e depois três e só pelo XVII - XVIII terá aparecido o de quatro, à mesa.

Consta que a utilização do garfo à mesa terá começado no século XI, na Toscana, região rica, de onde já emanavam modas nas artes, inclusive na comida. Tal moda, a de utilização do garfo para levar a comida à boca, levou a que a própria Igreja, sempre adversa a modas que ela própria não lançava, criticasse a sua utilização pois os dedos seriam os elementos recomendados para os alimentos dados por Deus! Sabemos ainda que foi o arcebispo de Cantuária que o levou para Inglaterra no século XII, durante o reinado de Henrique II. O garfo continuou como objeto de arte e alguns se produziram em ouro para constituírem ofertas de prestígio. O seu uso, no entanto, foi muito delicado, e até recusado em sociedade. O rei Filipe III de Espanha foi um grande impulsionador do seu uso existindo, nesse tempo, designações como “forquilha”, “bidente”, “tridente” ou “quadridente”, nomes ajustados de acordo com o número de dentes que o garfo possuía. Mas a nossa vizinha Espanha surpreende-nos com um desenho de um garfo, possivelmente o primeiro, com a obra do Marquês de Villena “Arte Cisoria” de 1423. Parece que em Portugal a sua utilização em finais do século XVIII ainda era pouco habitual, mesmo na Corte.  Segundo William Beckford o Confessor da Rainha D. Maria I e o Marquês de Marialva tinham alguma relutância em o usar, e apenas o faziam quando a Rainha lhes enviava um ar ameaçador.

No século XIX vulgariza-se o uso do garfo. Mas até este tempo dispúnhamos de colheres em vários tamanhos, de garfos, e de facas também. Nos finais deste século surge a grande novidade que é o talher de peixe: garfo e faca. Aparecem também no início do século XX um conjunto de instrumentos para além dos tradicionais colher, garfo e faca. Assim encontramos alicate e pinça para caracóis, alicates e diversas pinças para marisco, pinças para espargos, pinça para fondues, garfo para ostras, colheres para gelados, e outros mais. Acontece que estes utensílios apenas estavam disponíveis nos restaurantes de grande categoria, da mesma forma que os talheres nestes estabelecimentos seriam em prata ou prateados.

O talher de peixe, inicialmente encontrado nos estabelecimentos de grande categoria, começou a vulgarizar-se a todos os tipos e categorias desde meados do século XX. E aqui vai a minha interrogação sobre a sua necessidade. Começo por informar que eu sou contra o talher de peixe, afirmando frequentemente que não serve para mais nada do que para embaraçar o serviço de mesa.

Quantos de nós não assistimos já ao embaraço de muitos clientes não saberem que talher usar. Os profissionais sabem da lógica da sua colocação na mesa. E que basta utilizar de fora para dentro de acordo com os pratos e, portanto, na sequência lógica. Quantas vezes os empregados têm que repor talheres… Mas ao fazermos isto, estamos a criar constrangimentos ao cliente. E um cliente que se sinta embaraçado, muitas vezes não volta. E, com a falta de jovens que queiram seguir uma carreira “de mesa”, devemos aprender a simplificar para servir melhor.

Mas expliquem-me os defensores: para que serve o talher de peixe? Vejamos, mesmo na nova cozinha, cada vez mais eu até só uso o garfo. Mesmo um peixe com uma cozedura unilateral, sobre a pele, esta sai melhor com uma faca de carne. E quantos de nós não assistimos ao disparo de uma batata torneada ao tentar cortá-la com uma faca de peixe? E ainda como farão os canhotos para comer com talher de peixe?

Eu gostaria de organizar uma campanha contra os talheres de peixe. Já estou a ouvir os gritos de: absurdo, deselegante, pindérico… e outros adjetivos que me queiram dedicar. Afirmo que para os restaurantes o investimento é menor, a formação do pessoal é mais simples e muitas vezes os clientes agradecerão. Tenho a sorte de, em muitos restaurantes que já sabem desta minha posição, já nunca me colocarem talheres de peixe, e eu agradeço. E volto. Também voltarei a este assunto.

Quando comecei esta crónica já sabia que iria acabar assim. Mas não se esqueçam que o importante é que a comida seja boa e saberá melhor acompanhada com vinho.

© Virgílio Nogueiro Gomes