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(Estandarte do Maracatu Rei de Paus)

 

Estes festejos estão sempre associados a origens religiosas ou sociais a que nem sempre damos a devida atenção. Quando refiro origens sociais incluo todo o tipo de manifestações de grupo que aprendeu a viver e a ter convivialidade com códigos e condutas referenciadas.

 

O Carnaval tem várias expressões pelo mundo, mas sempre associado a folia, ao desregramento e sátira social. E por vezes, a exemplo das manifestações religiosas, estas manifestam-se também a nível de tradições alimentares conjugando o sagrado e o profano. Segundo Raul Lody “Não há gratuitidade na elaboração de uma comida em âmbito sócio - religioso”, constituindo a comida nestas circunstâncias “vínculos fundamentais com a existência da vida”. “Pode-se dizer que comer é festejar, vivenciar o mundo”. O Carnaval é pagão, representando os exageros, ou provocações, que antecede a época de Quaresma que se aproxima, com sacrifícios naturais em relação à prazenteira Gula. O jejum já está à vista! Exagerar para depois cumprir… Terei oportunidade de referir mais em detalhe a integração de comida em outras festividades de cariz essencialmente religioso, á medida que forem aparecendo no calendário.

 

O Carnaval foi escolhido por muitos grupos sociais para se manifestarem pois, nesse período, a liberdade de expressão era certamente menos controlada. “É Entrudo, passa tudo”. Nalguns grupos africanos, na América latina, acontece a associação a alguns símbolos de aproximação católica e dessa mistura nasceram festejos, agora, naturalmente carnavalescos. Temos exemplos da utilização da calunga (divindade criança) integrada nos maracatus (festejos carnavalescos de origem nos colonos de origem africana) e saídos, por exemplo de igrejas como de Nossa Senhora do Rosário ou de S. Benedito, com aparente significação católica. A festa é importante pois sempre constitui “campo privilegiado para as sociabilidades, para as interacções, e para o exercício de uma cultura própria”, segundo Pires Marques. Estas circunstâncias deram pois origem a um tipo de Carnaval do Brasil, verdadeiramente autêntico e promovidos pelas suas gentes. Nós estamos habituados às grandes escolas de samba do Rio de Janeiro e São Paulo, e ainda ao Carnaval de Salvador da Bahia, executado de outra forma com influências africanas. Ora estes Carnavais é que se afirmaram como ícones do Brasil, esquecendo outras manifestações mais autênticas, mas menos divulgadas. O Carnaval do samba está invadindo o mundo.

 

Estes Carnavais, a que me referi anteriormente, mantêm-se ainda no Recife, Pernanbuco, Olinda e Fortaleza. Claro que, lamentavelmente, o Carnaval de cariz nacional, ou português, quase está também em extinção, influenciado que está pelas escolas de samba brasileiras. Com muita alegria e muito despimento de roupas, ou fantasias, e abandonando o pouco que há de nosso. Excepções para Torres Vedras, Nordeste Transmontano, em parte Loulé e outras pequenas excepções de pequena dimensão. Temos sorte que quarta-feira de Cinzas em algumas localidades ainda se solta a Morte e o Diabo que fazem correr, e assustar, as raparigas novas.

 

Mas eu gostaria de associar ao Carnaval algumas tradições alimentares. Não de forma exaustiva mas especialmente para uma chamada, de alerta, para o risco que corremos com a perca de algumas tradições, que se traduzem em diminuição da nossa identidade cultural. Da mesma forma que o nosso Carnaval de folguedo está descaracterizado, rapidamente as nossas tradições alimentares se perdem também.

 

Lembro-me que na época de Carnaval se fazia o elogio final aos enchidos mais tardios da matança de porco. Eram os “butelos” cozidos com “cascas”, eram os chouriços de ossos, era o pote com água com o último osso de presunto do ano anterior que dava aquele gostinho especial às couves que nela se coziam, ou ao arroz confeccionado com aquela água. Mas o Carnaval era o abuso da carne e confecções mais pesadas. O frio ainda continuava e apenas aquelas comidas ou os folguedos de rua nos aqueciam. O dia de refeição especial, e principal, era sempre o Domingo. A terça-feira era uma refeição rápida para correr para a rua preparados com alguma farinha e bisnagas de água, para brincar “ao Carnaval”. Também se faziam sopas completas que constituíam uma refeição. Sopas que levavam sempre carne e enchidos. Curioso é que eu vou encontrar no Brasil, nos ensaios das escolas de samba do Rio de Janeiro, uma “Sopa de Entulho” distribuída no final para recuperar força e energia. Ora essa sopa é a coisa mais parecido que eu conheço com a nossa “Sopa da Pedra”. Se isto acontece no Sul, mais a Norte, em Fortaleza, não havendo muita tradição culinária associada aos cortejos dos “maracatus” vim a saber que quando o Maracatu Rei de Paus efectua exibições fora do local habitual, a responsável prepara uma sopa especial com muita variedade de legumes à qual junta carne da perna, de bovinos, picada e que deixa ferver. Não tive a sorte de experimentar mas os foliões participantes me garantiram que é uma sopa extraordinária e que substitui uma refeição. Fui bafejado pela sorte ao ser aceite por este grupo Maracatu Rei de Paus, liderado pela Dona Nazira Barbosa e bem apoiada pelos seus filhos Francisco José e Pedro Paulo que executam um trabalho extraordinário dos ensaios deste grupo que celebra este ano o seu 50º aniversário, e ao qual preside o Francisco José Barbosa, o “Bebeto” para os mais próximos.  Ainda tive a sorte de conhecer o mestre Cícero Anastácio responsável pela execução da fantasia com que vou desfilar. Ora é destes Carnavais autênticos que eu gostaria que se mantivessem em Portugal. Devo referir que é a própria Dona Nazira que é responsável pela confecção da sopa e que me contou a sua receita.

 

Este hábito de associar alimentação às festividades mais ou menos religiosas ou essencialmente pagãs tem origem nas tradições seculares, antes do estabelecimento da Igreja Católica, de fazer oferendas aos deuses com alimentos. Alimentar os deuses é também alimentar a relação do homem com as divindades e efectuarem um acto comum, ou de maior aproximação.

 

Todos conhecemos a feiras de fumeiro que se realizam nesta época. Especialmente no Norte e em especial em Vinhais que este ano termina Domingo de Carnaval. E não me vejam com desculpas que a ASAE está a prejudicar a tradição alimentar portuguesa. Tenha pena é que não acabe com a alheira de bacalhau e outros sucedâneos. Eu sou um apoiante da sua actividade e que garante uma maior higiene e segurança alimentar. O que destrói a nossa tradição é a nossa preguiça e alguma falta de imaginação e entusiasmo. E também sentirmos orgulho naquilo que é nosso.

 

A minha proposta é que se inventarie, melhor, se descubra, e aplique, as tradições locais a cada festividade independentemente da sua origem. Se o Carnaval se está a descaracterizar em termos de folguedos que pelo menos na comida vamos ainda a tempo de garantir que se mantenham as tradições. Que ajudemos a guardar a nossa identidade.

 

Bom Apetite, com muita Diversão.

 

© Virgílio Nogueiro Gomes