A comida e a guerra

Estamos habituados a ver aparecerem livros com receitas de mesas de elites, de soluções modernas, contemporâneas, e de grandes novidades. Vão também surgindo livros com receitas ajustadas a determinadas regras ou modas, e ainda livros de receitas para melhor gerir a atividade doméstica. Não é fácil o aparecimento de livros com receitas de determinados períodos de fome. Desta vez fui surpreendido pelo livro Las recetas del hambre – La comida de los años de posguerra, de David Conde y Lorenzo Mariano, da editora Crítica, Barcelona, Maio de 2023. Trata-se de um livro extraordinário sobre a alimentação do povo durante a guerra civil de Espanha entre 1939 e 1942. Os autores referem que nesse período se publicaram vários livros que continuaram a apresentar receitas de elites e apenas um teve o cuidado de publicar receitas mais ajustadas com as carência económicas da época: Cocina de Recursos, do famoso Ignacio Doménech, publicado em 1941.

 

 

 

fome0

A questão da alimentação das guerras afeta todos os envolvidos nos territórios, inclusive as forças militares. Marion Godfroy, no seu livro Napoléon – Que manjait-il?, Payot 2017, escreveu que possivelmente Napoleão perdeu a guerra por insuficiência alimentar dos seus militares. Segundo Godfroy: “Ganhar a guerra, é preciso primeiro alimentar os homens”. Mesmo Richelieu, no seu testamento escreveu: “que exércitos perdem por falta de pão…” Também Frederico II da Prússia escreveu que: “a arte de vencer será vencida sem a arte de subsistir”. Terá acontecido o mesmo com as tropas de Aníbal e, nesse tempo, as dificuldades seriam maiores.

O livro acima referido, Las recetas del hambre, não se preocupa com os militares, mas sim com a população que sofria. E o engenho de com ingredientes simples e pouco variados fazer o suficiente para alimentar e por vezes alegrar o dia a dia.

O livro tem um capítulo para pequenos almoços (café, pães, migas e sopas de hortaliças), almoços (gaspachos, sopas e caldos, cozidos, coisas do campo, a arte de aproveitar e as carnes e peixes), jantares (papas e pratos com castanhas), as comidas festivas, e os pães (de batatas, de bolotas, de tremoços, de castanhas e de milho). Há denominações de receitas que despertam a curiosidade como: “Sopas de cavalo cansado” (idênticas às nossas como podem reler aqui) ou “Tortilha de batatas sem batatas nem ovos”. Na essência do livro há um termo muito em moda por aqui que é a sustentabilidade. A necessidade a muito obriga e agora fala-se em sustentabilidade porque se abrandou a educação. Os que tivemos a sorte de ser educados na província fomos educados a que produtos alimentares ou alimentos nunca eram sobras ou restos. Tudo tinha uma solução que ajudava a economia doméstica.

Por aqui nunca houve a coragem de ser fazerem livros como este. Resta-nos a consolação de se fazerem livros com receitas (sempre mais elitistas) para fazer proveitos que ajudam algumas instituições com objetivos caritativos.

 

 

Eis alguns exemplos que existem na minha biblioteca:

1899 – Cosinha Portugueza ou Arte Culinaria Nacional, por um grupo de Senhoras que elaboraram ou cederam as receitas para um livro cuja venda revertia para o Instituto Pão de Santo António, em Coimbra. Mencionado na primeira página: “Producto aplicado a um fim piedoso.”

 

 

 fome1

Primeira página

1902 – Cosinha Portugueza ou Arte Culinaria Nacional, trata-se da segunda edição, revista e ampliada do livro anterior.

 

fome2

Primeira página

1963 – Cooking in Portugal, por American Women of Lisbon, mencionado que o produto da venda se destina para “Portuguese charities”, edição bilingue português/inglês

fome3

Primeira página

 

2000 – «Si la sauce est trop salée…», de Ida Mary Turner Donnat, em edição para o Convento dos Cardaes. É um conjunto de receitas do mundo e não pensar que são as receitas da alimentação deste convento que alberga uma instituição muito especial que também apoio.

 

 

 

fome4

Capa

2003 – Receitas do Convento dos Cardaes, de Graça Sá-Fernandes, em edição para o Convento dos Cardaes. Neste livro a maioria das receitas são de origem portuguesa e bem testadas pela autora.

fome5

Capa

2015 – Receitas do Convento dos Cardaes, de Graça Sá-Fernades, editora Althum.com. Trata-se de uma segunda edição ampliada do livro anterior adicionada de refeições especiais com chefs que cederam também as suas receitas.

fome6

Capa

Devo acrescentar que os livros que apresento têm receitas muito boas e fáceis de confecionar. Receitas na maioria de uma origem feminina, universo das cozinheiras que conhecíamos e nos alimentavam.

Deixo um apelo a visitarem o Convento dos Cardaes, e comprar na sua boutique gourmet.

Bom Proveito!

© Virgílio Nogueiro Gomes

Convento dos Cardaes
Rua de O Século, 123
1200-434 Lisboa

Telefone: 213 427 525

 

Vejam as fotos da loja do Convento dos Cardaes após remodelação

 

cardaes4net 

Mesa montada com louças cópias dos originais do convento

 

 

cardaes8net

Outro aspeto da loja com tríptico / oratório pintado por Lucian Donnat

 

 

cardaes9net

 Mais um ângulo da loja tendo ao fundo um grande armário expositor com doces, compotas e outras iguarias