Sopas de Cavalo Cansado

 

 

 

 cavcan4

 

 

Há tradições alimentares portuguesas que entraram em desuso sem se ter sabido a sua origem, a sua história. Não há a certeza do início destas sopas, mas contam-se várias histórias por vezes consideradas como lendas. Recentemente um amigo meu telefona-me a perguntar a origem desta tradição e disse o que tenho na minha memória. Pela lacuna assumida decidi estudar melhor para lhe dar uma resposta mais concreta. Depois de várias consultas fiquei com mais perguntas do que respostas.

Há uma opinião comum que acha esta receita como um energético. Mas será verdade que seria um homem que as estava a preparar para seu consumo e o cavalo que lhe estava próximo, as engoliu e ficou como que embriagado parecendo cansado e não lhe apetecer trabalhar. Esta é uma das explicações para a denominação da receita, da qual não há registo desta ocorrência, mas ficou como uma história popular.

É certo que, no interior, (Minho, Trás-os-Montes e Beiras Interiores) e em dias de trabalhos agrícolas em período de inverno, serviam-se durante o “mata-bicho” estas sopas de vinho adoçadas e muitas vezes aquecidas, para garantir energias para as fainas que os aguardavam. Não há uma receita única para estas sopas. Os ingredientes obrigatórios eram o vinho tinto, o pão e um adoçante (açúcar ou mel), depois a canela e ovo como complementos. Habitualmente junta-se uma gema de ovo numa tijela com vinho tinto e o adoçante que poderá ser açúcar, ou açúcar amarelo ou mel, que se batem bem. Noutra tijela desfaz-se pão (broa de milho ou centeio) ou esfarela-se, e rega-se com ao mistura do vinho tinto. O vinho pode ser previamente aquecido e pode juntar-se canela em pó ou canela em pau partidas para criar arestas vivas e dar, de facto, o gosto a canela. Também se podem juntar uma folhas de hortelã grosseiramente picadas.

As historietas sobre a sua origem são várias, mas sempre a tempos antigos e por vezes assinalando a pobreza das gentes. Na obra do meu ilustre amigo Pires Cabral, Língua Charra – Regionalismos de Trás-os-Montes e Alto Douro, Âncora Editora, Lisboa, 2013 reproduzo a imagem:

 

 

cavcan1 

Língua Charra

Os meus amigos Adozinda Marcelino e Acúrcio Martins, no livro Memórias da Cozinha Transmontana, Âncora Editora, Lisboa, 2015, dão a seguinte receita: “Migue uma boa dose de pão para uma malga. Tempere com açúcar e regue com vinho bem frio”. Em nota de rodapé escreveram que “… eram muito usuais durante a segada como fortificante.”

No Dicionário de Gastronomia da saudosa Maria António Goes, Colares Editora, Sintra, 2005, escreveu: “Sopinhas de pão molhadas em vinho tinto, geralmente quente e temperado com açúcar e especiarias.” As especiarias seriam pimenta preta e cravinho da índia.

A receita, pois desconheço a prática, passou o Atlântico e encontramos no Dicionário-Almanaque de Comes de Bebes, de Cláudio Fornari, Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 2001, a seguinte definição: “Sopa do norte de Portugal, feita com vinho tinto, pão torrado, açúcar e canela. Também do Brasil, no Dicionário de Gastronomia, de Myrna Corrêa, Editora Matrix, São Paulo, 2016, apresenta: “Sopinha de pão molhado em vinho quente, polvilhado com açúcar e canela.”

cavcan2

Produtos para a confeção desta crónica

Também o famoso Padre António Lourenço Fontes, em Etnografia Transmontana – II O Comunitarismo de Barroso, Edição do Autor, 1977, se refere a este tema: “A merenda no Verão usa-se uma vez ou outra, com sopas de burro cansado. Deitam vinho com mel ou açúcar, num prato. Partem fatias de pão, (centeio) melhor se for de trigo, e molha-se bem e come-se.”

Mas voltando à sua origem desconhecida, vejamos as histórias que se contam sobre esta tradição. Depois da forma contada no início desta crónica surgem outras com um sentido contrário. Aquele dá-lhe o nome porque o cavalo, aparentemente embriagado, parecia cansado. As outras versões apontam o sentido de utilizar as sopas como uma revigorante, ou fortificante, e garantir um bom trabalho especialmente no tempo frio, daí se aquecer o vinho. Curiosamente no site Pesquisar Portuguesice pode ler: “…quando havia pouca variedade de alimentos para a maior parte da população e uma mistura de pão com vinho pela manhã era o principal alimento que ajudava a dar força para começar o dia no campo. Apesar de controversa, essas sopas também eram dadas aos miúdos, para que ficassem a dormir sob o efeito do vinho enquanto os pais estavam a trabalhar.” Não tenho memória de em criança alguma vez me acontecer. Por vezes, quando íamos durante o inverno, para a Escola Primária, a nossa Mãe dava-nos uma gemada com umas gotas de Vinho Fino, ou Vinho do Porto!

 

 

cavcan3

Eis as sopas prontas, quase sempre servidas em tijelas

Há outra versão que atribui o consumo destas sopas pelos cavalos que puxavam carros, ou carruagens de transporte de pessoas, mercadorias ou correios, e ainda os que tinham tarefas agrícolas. A função das sopas seria para lhes dar energias para começar ou continuar as tarefas. Este teoria e semelhante tradição encontramos também na Galiza cuja receita tem o nome “Sopas de cabalo cansado”.

Não há só uma receita. Construam a vossa conforme as necessidades e o gosto.

Bom Apetite!

© Virgílio Nogueiro Gomes