Denominação de receitas
Não é a primeira vez que abordo esta questão neste espaço. É cada vez mais gritante a opção de dar o nome de receitas tradicionais a pratos que são verdadeiramente outras receitas ou que introduzem elementos de rutura na receita em relação à fórmula como entrou na tradição. Eu sei que existe a evolução, mas esta não deve descaracterizar o prato. Não há mal nenhum em mudar o nome, ou indicar a inspiração!
Por vezes somos, também, surpreendidos com ecos do estrangeiro que se pronunciam sobre a nossa cozinha, e com algum atrevimento. No início deste ano Felicity Cloake, jornalista especializada em gastronomia, do jornal The Guardian, com a receita do Caldo Verde. É hábito a jornalista apresentar receitas de países estrangeiros para que os leitores as possam confecionar em casa. O este caso torna-se hilariante porque considera estar a dar a receita «perfeita». Para o efeito usa os seguintes ingredientes: «75 gramas de chouriço, uma colher de chá de azeite, uma cebola, dois dentes de alho, uma folha de louro, 250 gramas de batata, 750 mililitros de água ou caldo de galinha e 200 de couve». Até aqui nada de grave apesar de incluir o louro e faltar o toucinho que em muitas regiões coze com a batata. Felicity Cloake usa uma «couve frisada» que se pode perdoar pois nos mercados do Reino Unido não aparece a nossa couve-galega. Explica que utiliza a «couve frisada» que lhe dá melhor cor jade. Mas a jornalista começa por fazer um refogado com o azeite e o chouriço, alho e louro. Depois junta água e as batatas para cozerem. Estando as batatas cozidas separa algumas inteiras para cortar em cubos. As restantes são esmagadas com um garfo. Propõe também que em vez de água se utilize caldo de galinha. Já imaginaram o nosso caldo verde vir amarelado e com cubos de batata a boiar? E insisto, o pior, é ela chamar à sua receita de caldo verde perfeito. Em Portugal as variantes do caldo verde limitam-se à forma e tempo de cozedura das couves, o chouriço que cada região usa o seu, e o pão que acompanha.
Em contrapartida desta estranha receita de caldo verde do The Guardian, na edição de 3 de junho de 2020 da revista Hola, a Princesa Carla da Bulgária apresenta como uma das suas sopas favoritas o nosso caldo verde e apresenta uma receita que poderia ser de qualquer legítima casa portuguesa, e bem ajustada à nossa tradição.
Outro recente atentado de iluminados estrangeiros foi a apresentação da receita de «bifana» por Gordon Ramsay. Tenho que confessar que não sou um fã dos programas de televisão que ele apresenta. Na maioria das vezes não reflete o que, de facto, acontece nas cozinhas…! No meio do pão coloca carne assada, pimento, queijo, rúcula, tomate… Apetece perguntar por que se foi meter com a nossa bifana, tão rica na sua simplicidade? Francisco José Viegas escreveu, na revista do CM de sábado em agosto ou setembro, uma crónica muito interessante sobre a criação de Ramsay. Nenhum português identificaria o produto final de Ramsay com aquilo que ele chama de bifana portuguesa. Aquilo é uma sande tipo americana muito recheada que parece uma refeição completa entalada num pão. A propósito, Francisco José Viegas, escreveu: «o segredo das coisas tradicionais está na sua simplicidade absoluta, reservando-se o barroco para a música e para a pintura».
Outro recente atrevimento de alteração de receitas é a das «ameijoas à Bulhão Pato» que em muitos locais lhe adicionam vinho. A primeira receita parece ter sido publicada em 1933 (A Cozinha Ideal de Manuel Ferreira, Agência Eva) e, até finais do século XX, nunca se juntava vinho. Mais um caso de singularidade de uma receita na qual a sua excelência é a sua simplicidade. Os espanhóis é que frequentemente usam vinho nas suas ameijoas… Os empresários da restauração andam esquecidos que há a lei que obrigado a informar dos produtos alergénios. Raramente isto acontece. Esta informação tem como suporte uma lista de 14 substâncias ou alimentos que podem provocar alergias ou intolerâncias, publicada pela Comissão Europeia (anexo II do Regulamento n.º 1169/2011, de 25 de outubro) e os produtos são: 1 – Cereais que contêm glúten (trigo, centeio, cevada, aveia, espelta, kamut ou outras estirpes hibridizadas) e produtos à base destes cereais; 2 – Crustáceos e produtos à base de crustáceos; 3 – Ovos e produtos à base de ovos; 4 – Peixes e produtos à base de peixe; 5 – Amendoins e produtos à base de amendoins; 6 – Soja e produtos à base de soja; 7 – Leite e produtos à base de leite (incluindo lactose); 8 – Frutos de casca rija, nomeadamente, amêndoas, avelãs, nozes, castanhas de caju, pistácios, entre outros; 9 – Aipo e produtos à base de aipo; 10 – Mostarda e produtos à base de mostarda; 11 – Sementes de sésamo e produtos à base de sementes de sésamo; 12 – Dióxido de enxofre e sulfitos em concentrações superiores a 10mg/kg ou 10ml/L; 13 – Tremoço ou produtos à base de tremoço; 14 – Moluscos e produtos à base de moluscos. Em Portugal a legislação que obriga à identificação destes produtos é o Decreto-Lei_n. 26_2016_ junho. Ora isto não acontece em muitos locais de restauração. Recentemente pedi uma Ameijoas à Bulhão Pato e o cheiro era tão intenso a vinho que questionei o empregado se tinham sido preparadas com vinho. Depois de ir à cozinha confirmou que sim, tinham, vinho, devolvi as ameijoas à cozinha, intactas, e no final não registaram na fatura. Também recentemente estive num restaurante que tinham nas propostas, Ameijoas à Bulhão Pato, e na tradução inglesa incluíam o vinho!!! Por mim podem continuar a juntar o vinho, mas devem acrescentar «com vinho» e não esquecer os «sulfitos» na lista dos produtos alergénios. É tão mais fácil servir as Ameijoas à Bulhão Pato segundo a tradição e depois nos produtos alergénios já não precisam de assinalar os «sulfitos».
Bom apetite e usem a nossa restauração.
© Virgílio Nogueiro Gomes