Banha de Porco e a Doçaria Portuguesa
Quando se fala em banha de porco a nossa imaginação leva-nos de imediato para uma gordura sólida, cremosa e branca. Poucos sabem a sua origem, e utilização. Por outro lado, parece um produto de alimentação pobre além de ser um alimento que provoca medos, ou ser banida por algumas religiões. Sempre houve medos alimentares e muitos deles associados à carne e seus derivados. É um produto sujeito a preconceitos!
Recentemente fiz um estudo sobre a dimensão de doçaria portuguesa que incluía nos seus ingredientes: derivados de porco, ou e azeite, ou e aguardente e ou e Vinho do Porto. Selecionei um grupo de livros que contém inventários de receitas a nível nacional e outros de referências regionais. No final construi uma lista de 860 receitas…!
De seguida concentrei-me a isolar as que continham derivados de porco, são 330, e estudar melhor a importância dessa categoria. Grande maioria diz respeito a banha de porco, seguida de sangue, torresmos e até lombo de porco. Por isso vou dedicar-lhe estes escritos. Este estudo foi apresentado no 15º Congresso dos Cozinheiros (CNC) que se realizou em Oeiras a 10 a 12 de novembro 2020.
Não se evidencia por que razão os nossos longínquos antepassados juntaram essa gordura na massa. A junção pode ter sido espontânea e não estudada, mas os resultados devem ter sido reconhecidos, pelo menos, como satisfatórios. De facto, se fizermos duas massas iguais alterando apenas a gordura, sentimos de imediato uma elasticidade diferente. E o produto final? Parece que a banha de porco terá garantido maior perenidade ao produto final, arrastando-se essa boa junção até aos dias de hoje. Possivelmente terá sido utilizada para consumo dos recursos naturais, tudo era aproveitado, e assim uma razão económica.
Torresmos de Rissol do Alentejo
Se perguntarmos, a um público pouco esclarecido nas artes culinárias, o que é banha de porco a maioria responderá que é a “gordura de porco, a parte branca”. Poucos saberão ir mais longe. Talvez no interior do país ou quem tenha assistido a uma matança de porco tradicional consiga responder com mais detalhes. Tradicionalmente conhecem-se três tipos de banha de porco: de primeira, que é constituída pela gordura que envolve os intestinos do porco (as tripas) e que dá origem ao torremos especiais como os “torresmos de rissol” do Alentejo, os “torresmos de redenho” (também se diz de redanho) de Trás-os-Montes, e as famosas “sainhas” de Vagos, região de Aveiro que tem inclusivamente a Confraria Gastronómica As Sainhas que os estuda e divulga. A operação de recolha desta gordura chama-se “tirar o unto às tripas” ou ainda “colher o véu” ou “colher a teia”; de segunda que é a gordura que envolve os rins e que tem apreciadores em França com receituário específico, e também pode ser chamada de “manteiga de porco”; a terceira que é a gordura que se encontra junto ao corpo, também conhecida por “toucinho” e que é mais fina e oleosa.
Tentei estudar a importância deste produto na nossa doçaria. Considero doçaria todas as preparações doces independentemente da sua categoria, incluindo os pastéis. Para mim temos a Doçaria Popular e a Doçaria de Romarias (do Povo para o Povo – na escrita de Emanuel Ribeiro); a Doçaria Rica e a Doçaria Conventual; a Doçaria de Fabrico Próprio; e as Sobremesas. Ora é quanto a este último grupo de doçaria que dirijo algumas sugestões utilizando as categorias anteriores e assim estimular a doçaria tradicional portuguesa. As sobremesas não são “simplesmente” colocar um pastel ou fatia de bolo num prato. As exigências de uma sobremesa vão mais longe e, agora, com a tendência do fine dining as sobremesas são também de uma importância crucial não só por serem o último ato de uma refeição como é a iguaria mais próxima do pagar a conta.
A Doçaria Popular e a Doçaria de Romarias tem sido pouco valorizadas não só nas mesas como em compêndios culinários. O seu elogio livresco é lançado a partir de 1923 e 1928 com o livro “O Doce Nunca Amargou” de Emanuel Ribeiro, e em 1957 com o livro “Doçaria Popular Portuguesa” de D. Sebastião Pessanha. Depois do pão, a maior maravilha culinária da Humanidade, os doces devem ter surgido com o enriquecimento da massa de pão com ovos e mel. Depois foi um continuar afinado até à grande variedade de hoje. Essa massa de pão enriquecida foi também melhorada com adição de outros produtos como o azeite e manteigas de porco ou de vaca, açúcar, aguardente e outros vinhos e uma tradição também herdada dos árabes que são as águas de cheiro: de rosas e flor de laranjeira. Cada produto tinha as suas funções e muitas vezes os vinhos e águas de cheiros seriam para eliminar a eventual gosto das gorduras.
As primeiras receitas portuguesas doces, com gordura de porco, são da segunda metade do século XVI no caderno da Infanta Dona Maria “Receita das Morcelas” e depois em 1788, no famoso livro “Arte Nova e Curiosa para Conserveiros Confeiteiros e Copeiros” de um anónimo, com uma “Receita de Bolos”. Depois continuaram e com a divulgação de receituários no século XX podemos afirmar de forma mais consistente a importante presença destes produtos. Para além dos doces com derivados de porco, encontramos ainda outros doces com carnes como o Manjar Branco com peito de galinha e o Manjar Branco de Coimbra e o Manjar Real de Coelho, de Vila Viçosa.
Cristas de Galo de Vila Real
Das 330 receitas nas quais entram derivados de porco apenas vinte e duas evidenciam no seu nome a utilização desses produtos: Bolachas de Banha, Bolema de Torresmos, Bolinhos de Banha, Bolinhos de Torresmos, Bolos de Sangue, Broa de Banha, Broas de Torresmos, Broas de Toucinho, Chouriços de Sangue, Doce de Toucinho, Filhós de Sangue, Morcelas de Lombo de Porco, Morcelas Doces de Sangue, Papas de Porco, Papas Doces de Sangue, Pastéis de Toucinho, Pudim de Presunto, Pudim de Toucinho, Queijadas de Toucinho da Graciosa, Sangue Doce de Valpaços e Torta de Sangue de Porco.
As categorias de doces cujo nome não informa a utilização desses produtos temos uma lista mais alargada que contempla sessenta e seis grupos de receitas como os seguintes exemplos: Areias, Arroz doce, Azevias, Borrachos, Cocós, Coscorões, Covilhetes, Cristas de Galo, Escarpiadas, Esses, Filhós, Fogaças, Massa Sovada, Pitos de Santa Luzia, Rosquilhas, Sardinhas Doces, Sarrabulho Doce, Sequilhos, Vésperas… e muitos outros. Há doces como o “Toucinho do Céu”, que faria supor que tem toucinho como ingrediente, mas não tem. Há confusões populares como outra designação para as “Cristas de Galo de Vila Real” que também são conhecidas como “Pastéis de Toucinho de Vila Real” que levam toucinho, mas que alguns chamam de “Pastéis de Toucinho do Céu”, o que é um erro.
Bem, apenas uma sugestão. Informem-se bem sobre as qualidades da banha de porco, rica em vitamina D, fósforo e ferro, não contém açúcar, e ainda outras boas valências para a alimentação. Há novos conceitos sobre o valor alimentar deste produto. Em minha casa fazíamos torradas, à lareira, de pão centeio que barrávamos com banha de porco que havia sempre disponível.
© Virgílio Nogueiro Gomes