Caldo, Potagem e Sopa

 

 

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Segundo o Dicionário Etimológico de José Pedro Machado, Livros Horizonte, 2003, para caldo podemos ler: Do lat. caldu-, síncope de calidu-, «quente; ardente, fervente, arrebatado; recente, imediato; inconsiderado, temerário»; vj. Cálido. Séc. XIII.- «…comer non podia / nem bever nengua cousa senon cald’ ou agua fria», St Maria, Nº 322, vol. III, p. 179.

Para potagem lemos: Do f. potage, primitivamente, «tudo o que se deita na panela (pot)». Séc. XVI: «carneiros assados em fornos, e cozidos com diversidades de postagens», Mestre Afonso, Itinerário, cap. I, p.165, ed. De 1923.

Para sopa encontramos: Do f. soupe, que, por sua vez, provém do germânico ocidental suppa; o sentido primitivo parece ter sido de o «bocado de pão de pão que se deita no caldo», conservado no português. Séc. XIII «Et ij. Maravedis de sopas, quer ayam quer nom ayam», Inq., p. 309.

Vejamos como são definidos estes termos na Grande Enciclopédia da Cozinha, da nossa Mestra Maria de Lourdes Modesto, Verbo, 1960. Para Caldo: Líquido alimentar que se obtém pela cozedura de peixe, carne ou legumes em água temperada com algum sal. … Para Potagem: Tipo de sopa feita à vegetais e cujo nome tem origem no facto de ser cozinhado num pote. O terceiro termo Sopa: Dá-se este nome a um caldo mais ou menos grosso que é produto da decocção de certos alimentos: carne, legumes, peixe. As sopas podem ser tantas e tão diversas, que embora partindo sempre de um princípio idêntico, que foi possível a Ferdinand Grandi, publicar, nos finais do século XIX, um livro contendo 700 receitas de sopas!

 

 

 

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Há termos culinários para os quais eu gosto de saber a sua origem, e ou a forma como evoluíram, até para entender o seu significado quando esse termo é utilizado no título da receita ou sua preparação.

Em termos gerais e práticos podemos dizer que um caldo é uma preparação que resulta em cozer, legumes, massas, peixes ou carnes em água e que se consome a totalidade. O termo potagem quase desapareceu da linguagem culinária portuguesa, mas que derivaria do caldo feito em pote. Os franceses, deram-lhe outro significado e potage é muitas vezes o que chamam de sopa elitista. As sopas parece terem resultado de engrossar um caldo com pão. Estas não definições parecem fáceis e simples. Veremos como se complica quando verificamos com exemplos práticos do nosso dia a dia.

  

Curiosamente encontramos no invulgar livro “Le Mesnagier de Paris (1392-4?), escrito por um idoso, mas rico homem parisiense, para a sua jovem esposa no qual lhe transmite instrução religiosa e moral, conselhos de economia doméstica e numerosas receitas de cozinha e muito detalhadas. No entanto apresenta apenas uma receita de Bouillon (caldo), sete receitas de Potage (potagem) e também apenas uma de Soup (sopa). Mas interessante é encontrar na edição que consultei, Le Livre de Poche, 2010, com notas de Karin Ueltschi, que no final apresenta um pequeno glossário culinário: Potage: «Potage» designa o conteúdo do pote, da caçarola. Pode ser à base de legumes ou de carne, e na maioria das vezes uma mistura dos dois; pode ser espesso (ligado) como o nosso «potée», ou líquido como a nossa sopa ou «potage». A parte sólida da potagem é chamada de grão, e a parte líquida, é o puré sempre que se trata de uma potagem de legumes, o chaudeau (caldo quente) quando tem origem em gordura de carne. É o prato principal das refeições comuns, mas num banquete, é servido no primeiro serviço. Quanto a Soupe: Pedaço de pão que se molha no caldo, no vinho ou no molho. Este livro é o primeiro e portanto percursor de livros de cozinha da burguesia, na época Medieval, que também pretendia apresentar-se com elitismo na cozinha.

 

 

 

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O termo potagem surge no primeiro livro de cozinha publicado em Portugal, e por um português, Arte de Cozinha de Domingos Rodrigues, 1680. Para consulta utilizei a edição da INCM de 1987 com leitura, apresentação, notas e glossário de Maria da Graça Pericão e Maria Isabel Faria. Aparece seis vezes e nem sempre para o título da receita, aparece o termo potagem também como uma forma de confecionar. Vejamos as receitas: Sopa ou potagem à francesa e no índice é colocado Potagem à francesa para merendas; Galinha em potagem à francesa e no índice como Potagem à francesa para qualquer assado; Cenouras de tigelada e no índice como Potagem para cenouras; Lebre em potagem e no índice como Potagem para lebre, e coelho; Perdizes assadas à francesa e no índice como Potagem para perdizes assadas; Pratinhos de salmonetes e no índice como Potagem para peixe. Exceto as duas primeiras que têm no título da receita o termo potagem, as restantes significam um passo na confeção, ou pré-cozedura. No Glossário da edição citada encontramos para o termo Potagem: Caldo. Sopa. Legumes ou qualquer hortaliça que se mete no pote ou panela para se tornar comestível. É inevitável a evidência da influência francesa que é constante na maioria dos livros na Europa até meados do século XIX.

Em Portugal nunca assumimos no quotidiano, nem nos registos de receitário, o termo potagem. Penso que a verdadeira potagem seria o caldo permanente, que existia nos potes de três pés, sempre na proximidade da lareira, e que se utilizava em vez de água direta, para confeções como do arroz ou acréscimos de guisados, ou o líquido principal de estufados. E este caldo daria, de facto, outro sabor à comida.

Para os franceses existe realmente uma diferença entre potage e soupe, e que foi evoluindo no tempo. O melhor documento para entender a potage francesa é o “Dictionnaire de potages” de Michel Caron et Ned Rival, Éditions de la Pensée Moderne, Paris, 1964. O verdadeiro elogio da potage e a sua distanciação da soupe. Sim, porque se deduz que uma potage é uma soupe superior.

Entre nós parece fácil definir apenas duas categorias: o caldo e a sopa. Teremos então para caldo um líquido com sabor resultado da fervura ou cozimento de produtos alimentares. Os caldos podem ser de legumes, peixes, carnes ou mariscos, e muitas vezes servem como preparos ou bases de cozinha. O caldo pode ser acompanhado no cozimento também com arroz ou massas e aromatizados com ervas. Possivelmente o caldo mais famoso entre nós será a canja. Importada no séc. XVI da Índia tradicionalmente é feita com o cozimento de galinha e arroz. Só muito mais tarde se começou a usar massinhas, e isto parece-me que deveria ser anunciado nas propostas dos restaurantes. Os caldos podem dar origem aos famosos consommés e estes ainda podem ser clarificados. Alguns caldos podem ser reduzidos a cremes coma ação contemporânea da varinha mágica. Um prato a que chamamos caldo, o Caldo Verde, parece uma contradição pois realmente é uma sopa. E, possivelmente, chama-se caldo pois as sopas eram engrossadas com pão e eventualmente com castanhas. No caso do caldo verde o engrossamento é feito com batata que é a grande novidade na culinária portuguesa do séc. XIX.

 

 

 

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As sopas, elemento importante na qualidade alimentar e muitas vezes forma de subsistência com as sopas completas, revelou-se um tipo de alimento versátil e de muito valor. Ainda hoje vemos as sopas a alimentar doentes, pessoas carenciadas, militares e refeitórios estudantis ou de empresas, também alvo preferencial para determinados regimes alimentares até por razões de estética do corpo. Deveriam ser alimento preferencial para crianças e nunca as ameaçar com esse “castigo”. Como já referi atrás a sopa sempre esteve ligada ao pão. Sopa era caldo engrossado com pão. E mantemos na nossa terminologia culinária, desde o séc. XVI, o termo “ensopado” que significa muitas vezes um estufado ou guisado com fatias de pão. Uma das primeiras receitas de ensopado está no caderno de receitas da Infanta D. Maria: “Esta é a receita de galinha cozida e ensopada”, XXIII. Também chamamos “sopa” ou “sopinha” quando pegamos num pedaço de pão e o embebemos no molho do cozinhado. Este gesto vê-se cada vez menos, algumas pessoas têm vergonha de o fazer. Este ato deve ser assumido, especialmente, como uma forma de elogiar a cozinha. O gesto ficou na memória de muitos por Jesus, na Última Ceia, ter embebido um pedaço de pão no molho para identificar Judas, o seu denunciante. A importância do pão para o termo "sopa" está bem representada nas "Sopas Secas" que mais não são do que pão embebido com caldo.

Vários autores portugueses elogiaram a sopa. Apenas esta passagem no “Geografia Sentimental” de Aquilino Ribeiro: …sopa de feijão bem migada, com tempero de orelheira e chouriço…

O que mais aprecio nas sopas é a variedade de produtos e poder sentir na boca as diferentes texturas, por isso não apreciar os cremes. Sopas com história, ou de tradição portuguesa, seria um bom livro.

Comam sopa pela vossa saúde.

© Virgílio Nogueiro Gomes