O Último Apetite!

Depois de redigir a crónica anterior dei comigo a pensar que tipo de refeição escolheria por ser a última. Reflexão difícil. Alguém consegue friamente pensar que se morre, ou vai ser morto, no passo seguinte? Os meus pensamentos imediatos vão para uma simplicidade de pão de centeio com carne gorda de pouco. E, se calhar, nem vinho, apenas água. Não me imagino consciente a ter o último apetite a não ser o fim seja rápido! Nem me vejo como personagem do filme “La Grande Bouffe”, de Marco Ferreri, produzido em 1973, numa parceria franco-italiana. São as memórias da uma vida cheia da província que mais determinariam as minhas vontades. O pão de centeio seria obrigatório e alguma variação de produtos de fumeiro ou simplesmente um naco de bom presunto.

 

 

 

0bcg6

Pão de centeio

 

0bcg3

Pão de centeio com chicha gorda

O que poderia ser para mim a última refeição? Penso que se soubesse que era a última perderia o apetite. A não ser que fosse condenado…. Acontece que em Portugal foi abolida a pena de morte para crimes políticos em 1852 e depois em 1867 abolida para crimes civis exceto por traição durante a guerra. Curiosamente neste ano são também extintas as rodas de enjeitados. Depois em 1870 foi abolida a pena de morte nos territórios administrado por Portugal, províncias ultramarinas. Vem depois a Constituição da República Portuguesa de 1911 abolir a pena de morte para todos os crimes, incluindo os militares. Pela atual Constituição de 1976 a abolição é total. Além de não ter vivido naquele tempo, não me imagino a cometer aqueles crimes!

Sempre me causou alguma inquietação o facto de alguém ser enforcado. O facto de ter vivido em Bragança, e ter que cumprir algumas obrigações nas quais se incluíam visitas ao cemitério local, gostava sempre de entrar pela direita, junto ao muro, e no final lá estava a perturbadora sepultura de José Jorge de Figueiredo com a lápide: Aqui Jaz José Jorge / Foi Sentenciado à Morte em 3 de Abril de 1843. Ora parecia estranho que com regularidade lá colocassem flores e velas. Descendentes? Não, vim a saber mais tarde que eram devotos que lhe faziam pedidos e, pelos vistos bem resolvidos. O povo de Bragança e arredores até bem longínquos tem este justiçado como vítima inocente da malvadez humana e venera-o como santo e mártir, depositando na sua sepultura cera, azeite, dinheiro e outras dádivas, em cumprimento de votos e petições cujo bom despacho atribui à intercessão deste padecente. Com o produto destas esmolas já se lhe erigiu no cemitério público uma capelazinha sobre o local que se julga ser a sua sepultura, fazendo-se-lhe muitos sufrágios no aniversário da sua morte. Nesta capela arde permanentemente uma lâmpada e, além de muitas esmolas, há viçosas flores carinhosamente renovadas. (extraído do texto editado em Henrique.blogspot.pt). A população local tinha-o como um injustiçado.

 

 

 

presuntof

Presunto

Naquele tempo era tradição que o condenado tivesse uma última refeição a seu pedido. Não encontrei o relato dessa refeição ou se terá existido com essa preocupação por ser a última, uma despedida. Em contrapartida encontrei no livro “O Livro dos Enforcados” de Gustavo Barroso (1888-1959), segunda edição de 2010. A primeira foi em 1939, e baseado em relatos de enforcamentos entre 1835 e 1855 no Ceará, Brasil, e conta-nos no livro as histórias de dezoito crimes e as respetivas execuções. Pela minha parte vou transcrever apenas as referências às últimas refeições de alguns condenados. E comecemos com o primeiro: Uma alma caridosa trouxe-lhe um cálice de vinho, que sorveu um trago. Neste caso não temos informação da comida.

No seguinte pode ler-se: Sentado num tamborete e curvado para pequena mesa de madeira tosca, comia e bebia com grande apetite… Valendo-se da praxe que era satisfazer às últimas vontades dos condenados à morte, aquele exigira verdadeiro banquete para a época e lugar: galinha de cabidela, vinho e bolos.

 

 

cabidelat

Galinha de cabidela

Outro caso que naquela localidade, Quixeramobim, onde não havia carrasco e o juiz promete que daria a quem se encarregar de enforcar o negro

Francisco, de entre outros detidos, daria soltura, cinco mil réis em prata, uma galinha gorda e uma garrafa de vinho. Aparece um voluntário dizendo:

Pouco se me dá da galinha, do vinho e do dinheiro. O que eu quero é a minha soltura…

Temos outro que Esperava calmamente que o viessem buscar, comendo rapadura… uns moleques que o bispavam na rua e atirou-lhes a rapadura que comia para adoçar as últimas horas… nem ao menos pudera comer em paz a sua última rapadura.

Já outro: Ao pé do cadafalso, Hilário olhava-o calmamente, comendo devagar uma fatia de pão de ló e bebendo um copo de vinho.

Mais um que revela o hábito da última refeição, o último pedido: Trouxeram-lhe como de praxe, pão de ló e uma garrafa de vinho.

 

 

 

paolomg

Pão de ló de Margaride

O pão de ló seria um bolo fino e reservado a ocasiões especiais. Também temos o hábito de comer pão de ló em épocas festivas como acontece agora durante a Páscoa. Lembro-me de o meu Pai encomendar pão de ló de Margaride. O primeiro grande e fino pão de ló da minha educação. Só depois viria o de Ovar e o de Alfeizerão. Mas, todas as regiões têm o seu pão de ló. Podem saber mais lendo a o texto que escrevi anteriormente clicando aqui.

Voltando ao que seria provocado pelo meu apetite em relação ao uma última refeição, o pão de ló estaria na lista bem como um bom arroz doce, ou um leite creme queimado com ferro. Para mim os últimos desejos teriam a ver com as memórias de infância e juventude, a comida da saudade como Stéphanie Schwartzbrod descreveu no seu recente livro “La Cuisine de l’exil”, 2019.

© Virgílio Nogueiro Gomes

 

 

 

alfeizoito

Pão de ló de Alfeizerão

 

 

 

00bdm1

Bola doce de Miranda do Douro