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(Pão-de-ló de Mirandela)

Este bolo, bem português, é daqueles que merecem que se lhe escreva a rota pois encontramo-lo por todo o país, com mais incidência no norte. Será seguramente uma doce viagem, percorrendo Portugal à procura dos seus pães-de-ló. É tão específico em algumas localidades, que até ganharam a sua designação de origem, como também é um bolo partilhado em receitas de família pois, sempre que havia festa, a sua presença era obrigatória. Não consegui descobrir a sua origem. No entanto, a primeira receita que lhe dá a designação de pão-de-ló é no caderno de receitas da Infanta D. Maria (1538 – 1577), e é apenas uma confeção de um ponto de açúcar com amêndoas. No livro Arte de Cozinha, de Domingos Rodrigues, 1680, é novamente um preparado de amêndoas, e continua estranhamente sem ovos e sem farinha. É um doce de amêndoas, partidas em duas formas distintas, e aglomeradas num ponto de açúcar que, de depois de esfriar, se corta à faca e se serve diretamente. Esta receita também é encontrada no livro de receitas da última freira do Mosteiro de Odivelas. Depois encontrei a receita seguinte no Cozinheiro Moderno ou a Nova Arte de Cozinha, de Lucas Rigaud, 1780, a que chama de Pão-de-ló ou Bolo de Sabóia. Ora a receita que ele dá é muito mais semelhante a alguns pães-de-ló do que ao bolo de Sabóia. Segundo Lucas Rigaud, juntam-se vinte gemas com, metade do peso dos vinte ovos, de açúcar e batem-se muito bem. Seguidamente juntam-se as vinte claras batidas em castelo e só depois se junta metade do peso, do açúcar, de farinha. Quando bate as gemas com o açúcar, junta-se também raspa da casca de um limão e flor de laranjeira de conserva. Sugere servir simples ou também com uma cobertura feita com açúcar fino, clara de ovo e sumo de limão. Ora esta cobertura vai dar-nos uma pista para outros bolos derivados do pão-de-ló, com veremos mais à frente. Este Bolo de Sabóia vem mostrar-se muito semelhante a um bolo muito usado como base para depois ser coberto, ensopado ou recheado que é “Genoise”.

A receita de Lucas Rigaud deverá ter dado origem ao pão-de-ló de hoje, com as variedades que vou tentar inventariar, embora com a certeza que a lista não ficará completa. Encontrei várias estórias, e muitos locais reivindicando o seu nascimento. Mas, além de ser um doce popular, também encontramos conventos onde se confecionava, e possivelmente foi a partir dos conventos que surgem receitas mais delicadas. Genericamente, podemos afirmar que é um bolo fofo confecionado com poucos ingredientes: ovos, açúcar e farinha. A proporção entre eles, a forma de os misturar, e sobretudo a forma e o tempo como são batidos, é que vem criar a diversidade de pão-de-ló que hoje ainda podemos encontrar. Inquestionável é o sentido fofo que todas as regiões lhe atribuem. O mais diferenciado parece ser o do Alentejo ao qual juntam amêndoa ralada. É, no entanto, no Brasil que vamos encontrar a maior variedade de pão-de-ló registado em livros de receitas. Como exemplo encontramos no Dicionário do Doceiro Brasileiro, do Dr António Jose de Souza Rego, 1892, vinte e oito receitas sendo que algumas introduzem produtos locais como aipim, araruta, cará e milho. Frequentemente adicionam também sumo ou raspa de limão. Como também encontramos no livro À Mesa com Gilberto Freyre, uma receita de Pão-de-ló de Maria. Esta receita poderá ter sido obtida nas várias viagens que fez a Portugal, ou de uma Maria que lhes forneceu a receita. Surpreendentemente esta receita é muito semelhante, exceção para as claras de ovo, à receita que Isabel Gomes Mota publicou no livro Trás-os-Montes à Mesa. O curioso é que Gilberto Freyre esteve no norte a convite do Pai de Isabel, Almirante Sarmento Rodrigues e, quem sabe, numa dessas viagens recolheu a receita. Mas não foi só para o Brasil que exportámos o pão-de-ló. Continua a ser uma presença obrigatória no Japão o pão-de-ló que os jesuítas lá ensinaram e que adquiriu o nome de "Castella".

Como já referi anteriormente a variedade de pão-de-ló é devida à composição dos produtos da receita, à forma de os misturar, o tempo de gestos de batedura e ainda a temperatura de cozimento. Em relação aos produtos comecemos pelos ovos. As quantidades de gemas e claras variam substancialmente. E quanto à utilização dos ovos também temos as duas versões: ou os ovos completos diretamente batidos com o açúcar, ou as gemas batidas com o açúcar e, depois, a adição das claras batidas em castelo. Depois vem a variante da quantidade de farinha. Habitualmente a farinha é metade da quantidade de açúcar, ou ainda menos de metade. Exemplo em que a quantidade de açúcar é igual à de farinha é o Pão-de-ló, também conhecido por Pão leve da Beira Baixa. Outro exemplo é o pão-de-ló, de feiras ou romarias, de carater mais popular, em que por vezes a quantidade de farinha é superior à de açúcar. Muitas vezes este pão-de-ló, menos fofo e mais pesado, era colocado em cima de uma garrafa de Vinho do Porto, ou de um licor local e servia para leilão, ou quermesse, para angariação de fundos para a romaria.

Vejamos agora, em viagem rápida, uma pequena descrição dos pães-de-ló mais conhecidos. No Minho encontramos a maior variedade. Mas como Pão-de-ló Minhoto temos um bolo fofo feito a partir de mais gemas do que claras, tudo bem batido com açúcar e a casca de um limão, cerca de uma hora em movimentos a ritmo regular com bateiras e depois farinha peneirada que é adicionada com ajuda das duas mãos. Estes detalhes dos gestos são ricamente ilustrados no filme “Os Gestos dos Sabores”, executado pela Associação As Idades dos Sabores. Encontramos ainda o Pão-de-ló de Margaride, possivelmente o de maior expansão comercial, cozido em alguidar duplo de barro e revestido de papel. A mesma quantidade de gemas e claras e batidas em conjunto com o açúcar e depois adicionada a farinha em cerca de metade da quantidade do açúcar. Ainda no Minho temos um exemplo diferenciado que é o Pão-de-ló de Vizela que também é chamado de Bolinhol, cujo elemento mais evidente é a sua forma retangular e ter uma cobertura de calda de açúcar, que depois de arrefecer fica branca. Os ovos são batidos em conjunto com o açúcar e depois lentamente se junta a farinha peneirada. Interessantes são as informações que Isabel Maria Fernandes relata no livro Doçaria de Guimarães sobre o pão-de-ló daquela localidade confirmando a sua confeção desde o século XVII. Continuando no norte, temos o Pão-de-ló de Freitas, zona de Amarante, que na sua confeção utiliza dois tipos de farinha. Depois de bater as gemas com o açúcar, batem-se as claras em castelo e adicionam-se ao creme anterior. Depois junta-se delicadamente fécula de batata, farinha de arroz e fermento em pó, sendo que o peso é igual para o açúcar, a fécula de batata e a farinha de arroz. Coze em formas redondas barradas com manteiga. De Vila Nova de Famalicão, surgem-nos duas receitas incluídas no livro de Receitas da casa do mosteiro de Landim, que bate mais gemas do que claras com o açúcar durante pelo menos uma hora e depois junta-se a farinha. Vai cozer no forno em tachos de barro forrados com papel. De Trás-os-Montes, pela mão de Isabel Gomes Mota, surge o único pão-de-ló que começa por bater as claras em castelo, depois adiciona-se o açúcar e umas gotas de sumo de limão, agora as gemas e depois a farinha. Coze em alguidar de barro forrado com papel untado e depois tapa-se com um testo de panela. Nessa região aparecem ainda outros doces idênticos como o Pão-de-ló de Mirandela, mas cozido diretamente em forma redonda. Descendo até ao Douro, deparamo-nos com um doce da família do pão-de-ló: as famosas Cavacas de Resende. Confecionadas com grande quantidade de ovos que se batem, em maior quantidade de gemas do que claras, diretamente com o açúcar por cerca de uma hora. Junta-se depois a farinha peneirada que se mistura sem bater. Vai a cozer em formas, tabuleiros, retangulares polvilhados com farinha de milho. Depois de cozido corta-se em fatias a que se chama cavacas. Faz-se uma calda de açúcar onde se “molham” as cavacas e na parte superior, com ajuda de farinha de trigo, fica uma camada que arrefecida, embranquece. Conta-se que se deve esta receita ao contratempo de um casamento adiado e, estando já confecionados tabuleiros com o bolo decidiram ensopá-los em calda de açúcar para conservação e resultou neste prodigioso doce. De grande fama e prestígio goza o Pão-de-ló de Ovar. Com referências na tradição popular desde o século XVIII, confeciona-se batendo os ovos, com maioria de gemas, e o açúcar até obter um creme leve e claro. Depois junta-se a farinha tendo o cuidado de a peneirar duas vezes. Vai a cozer em formas redondas e também barradas com papel, mas que fica humedecido na zona central, como se fosse mal cozido. Temos ainda o Pão-de-ló de Arouca, possivelmente oriundo do Mosteiro de Arouca, também embalado às fatias e com cobertura de açúcar, e cuja receita está na mesma família desde 1840. Surpreendente é o Pão-de-ló de Alfeizerão, possivelmente uma receita acidental do século XIX. Consta que por erros de tempo de cozedura uma freira terá antecipado a saída do forno e ter ficado cremoso que faz as delícias dos seus apreciadores. Pode ser que a sua origem esteja no Convento de Cós, próximo da Alcobaça. Curioso é o Pão-de-ló de Figueiró dos Vinhos, com referências ao atual desde 1893, cuja diferença mais visível é a forma em que é cozido. Depois temos ainda o Pão-de-ló Saloio ou de casamentos, da Estremadura, o Pão Leve como é conhecido o pão-de-ló da Beira Baixa, e ainda o Pão-de-ló de Alpiarça no Ribatejo. Não fica aqui a lista total de pães-de-ló de Portugal. Prometo que tratarei, em crónicas posteriores, de forma individual, alguns destes referidos nesta crónica. E se começar a ficar seco o pão-de-ló poderá sempre fazer as melhores torradas doces e cobrir com geleia, ou ainda aproveitar e fazer Sopa Dourada.

Não esqueça que há excelentes generosos portugueses ideais para acompanhar e brindar à Vida.

Pão de Ló de Arouca

(Pão-de-ló de Arouca)

© Virgílio Nogueiro Gomes