Ameijoas à Bulhão Pato
Tenho escrito com alguma regularidade que não concordo com a alteração de uma receita sem que se lhe mude o nome. Certo que o processo evolutivo de uma receita pode acontecer, mas não é correto introduzir-lhe ruturas ou novos produtos que alterem significantemente essa receita. De muitas das receitas conhecemos o seu nascimento e, portanto, podemos observar como a receita foi evoluindo. E há receitas que centenárias, ou quase, conhecemos os seus registos.
Recentemente estive acompanhado num restaurante, e pedimos “Ameijoas à Bulhão Pato”. As ameijoas vinham em tacho de cobre com tampa. Quando retirámos a tampa, não sentimos o cheiro a coentros, mas um cheiro intenso a vinho! De facto, foi utilizado vinho na preparação e não teve tempo de reduzir ou evaporar. Ora, na sua versão original o vinho nunca entrou na confeção. “Ameijoas à Bulhão Pato” são uma receita elegante, simples e que exige ameijoas de boa qualidade e frescas. É para mim uma das melhores receitas de bivalves, ou de marisco, que pela sua simplicidade se torna numa receita sofisticada.
Não vou aqui fazer a história desta receita. É consensual para a maioria dos que escrevem sobre estes assuntos que a receita tenha nascido no antigo restaurante Estrela de Oiro, na rua da Prata, local frequentado por Bulhão Pato, e a receita ter sido uma homenagem do estabelecimento, e do seu chefe, ao escritor nos anos 30 do século XX.
Parece que a receita nunca terá tido vinho. Acontece que nos anos 60 e 70 também aparecem receitas ditas “à marinheira” e “à espanhola”, preparações rápidas, nas quais é utilizado vinho branco. Será que foram estas receitas que influenciaram a introdução de vinho nas “Ameijoas à Bulhão Pato”? Devo confessar que na maioria de restaurantes que regularmente frequento, não colocam vinho na confeção. E, por exemplo, um cliente que não pode consumir preparações que tenham vinho na sua composição, e na sua ingenuidade peças estas ameijoas, se reclamar o que acontece? Já uma vez me responderam que aqui é assim, sempre fizemos com vinho! Claro que é um restaurante onde não voltei. O que acontece se o cliente se recusar a consumir? À tradição é feita justiça?
Falta em Portugal um documento normalizador sobre a essência de algumas receitas que fazem parte da nossa tradição. Quando em 2000, o governo classificou a Gastronomia Portuguesa como Património Cultural (Resolução nº 96/2000 de 7 de julho) e no ano seguinte (Resolução nº 169/2001 de 15 de dezembro) foi criada a Comissão Nacional de Gastronomia, era expectável a elaboração de uma lista de receituário. Numa primeira relação de 26 receitas previstas constava já “Ameijoas à Bulhão Pato”, mas, infelizmente a comissão foi extinta em 2004 e nunca mais se reativou o processo.
Com os livros que estão perto de mim tentei identificar os ingredientes para esta receita. Apenas uma diferença: dois autores apresentam salsa e todos os outros apresentam coentros. Nenhuma receita tem vinho!
Eis os livros:
A Cozinha Ideal, Manuel Ferreira, 1933, Agência Eva e depois várias edições com Editorial Domingos Barreira: azeite, ameijoas, alho, limão e salsa.
Cozinha do Mundo Português, M. A. M., 1962, Livraria Tavares Martins: azeite, ameijoas, alho, coentros, limão, sal e pimenta.
Cozinha Regional Portuguesa, Maria Odete Cortes Valente, 1973, Livraria Almedina: azeite, ameijoas, alho, limão, coentros, sal e pimenta.
Cozinha Tradicional Portuguesa, Maria de Lourdes Modesto, 1982, Verbo: azeite, ameijoas, alho, limão, coentros, sal e pimenta.
Tesouros da Cozinha Tradicional Portuguesa, Maria Emília Cancella de Abreu, 1984, Seleções da Reader’s Digest: azeite, ameijoas, alho, limão, coentros, pimenta.
Manual de Gastronomia, José Albano B. Marques, 1985, Instituto nacional de Formação Turística: azeite, ameijoas, limão, salsa, sal e pimenta.
Estremadura, Maria Odete Cortes Valente, 1994, Círculo de Leitores: azeite, ameijoas, alho, limão, coentros, sal e pimenta.
A cultura gastronómica em Portugal, volume I, 1995, Centro de Formação Profissional do Sector Alimentar da Pontinha: azeite, ameijoas, alho, limão, coentros, louro, sal e pimenta.
Comeres de Lisboa, António Manuel Couto Viana e Ceferino Carrera, 1998, Vega: azeite, ameijoas, alho, coentros, limão, sal e pimenta.
Dicionário de Gastronomia, Maria Antónia Goes, 2005, Colares Editora: azeite, ameijoas, alho, limão e coentros.
Tratado do Petisco, Virgílio Nogueiro Gomes, 2013, Marcador/Presença: azeite, ameijoas, alho, limão, coentros.
Dicionário Prático da Cozinha Portuguesa, Virgílio Nogueiro Gomes, 2015, Marcador/Presença: azeite, ameijoas, alho, limão, coentros.
Na Cozinha de Miguel Castro e Silva, 2016, Lua de Papel: azeite, ameijoas, alho, coentros e limão.
História Gastronómica de Lisboa, Manuel Paquete, 2016, Colares Editora: azeite, ameijoas, alho, coentros, limão, sal e pimenta.
Petiscos do Rio e do Mar, Isabel Zibaia Rafael e Virgílio Nogueiro Gomes, 2017, Marcador/Presença: azeite, ameijoas, alho, limão, coentros.
BOM APETITE!
© Virgílio Nogueiro Gomes