Portugal em 1484
Por vezes as fontes para entender o nosso passado surgem-me quase por acaso. Em Madrid, no final de uma visita a uma livraria, dou de relance com a capa de um livro “Viajes de Extanjeros por España y Portugal em los Siglos XV, XVI y XVII” e me deixou entusiasmado e comprei. No meio de uma dezena de livros que trouxe dessa viagem, 2010, só em casa tive oportunidade de folhear e marquei logo a lápis para mais tarde ler com atenção.
O primeiro capítulo é dedicado ao diário do nobre Nicolaus von Popplau que visitou Portugal, vindo da Galiza, e atravessou o nosso país até chegar a Lisboa e, de seguida, foi a Setúbal, onde se encontrava o rei D. João II e na esperança de, por ele, ser recebido.
Nicolaus von Popplau, também conhecido por Nicolás de Popielovo era um nobre polaco nascido em Breslávia, reino da Boêmia no século XV desconhecendo-se, com exatidão, a sua data de nascimento e de morte. Após a morte de seu pai ele e o seu irmão Gaspar herdaram grande fortuna. Nicolaus decide viajar e faz-se acompanhar com cartas de recomendação do seu soberano para ser recebido em cortes europeias. A sua viagem começa na Áustria, passa por Antuérpia e vai para Inglaterra onde é recebido pelo rei Ricardo III que não o ajudou nas suas pretensões. Em junho de 1484 embarcou para Portugal fazendo uma escala em Santiago de Compostela e depois seguir por via terrestre. E começa a sua descrição do início da chegada a Portugal: No dia seguinte naveguei pelo rio Minho desde a cidade de Tui até Valença, que está em frente, e que pertence ao rei de Portugal. Continuou a sua viagem por terra passando por Ponte de Lima, Barcelos, Rates até chegar ao Porto, a melhor cidade de Portugal com a exceção da de Lisboa. Do Porto, num barquinho que chamam caravela, vim a Lisboa, umas sessenta léguas, num dia próximo de sexta feira, e depois do dia de São Lourenço (11 de agosto).
A cidade de Lisboa será tão grande como a de Colónia ou Londres de Inglaterra. De Lisboa a Setúbal há seis milhas. Aqui encontrei o Rei de Portugal (D. João II). À entrada consegui um albergue com os meus dois criados, na morada de um sapateiro... Logo mandei um dos meus criados que falava espanhol, ao palácio, para perguntar pelo cozinheiro do Rei. Este cozinheiro era um flamenco, a quem os cidadãos e negociantes de Lisboa me recomendaram para poder conseguir, por sua intervenção, uma audiência com o Rei. Curioso como, naquele tempo, e ainda sem grande vedetismo dos chefes de cozinha atuais, é o chefe de cozinha que irá conseguir que Nicolaus seja recebido pelo rei!
Um criado de Nicolaus informou o cozinheiro do Rei que o seu Imperador (Frederico III) lhe enviava credenciais para ser recebido pelo Rei de Portugal, pedindo-lhe que se conseguisse um albergue para ele e seus criados. O cozinheiro do Rei encarregou um dos seus moços para o colocar numa casa mais eis que, momentos depois, chegaram homens do palácio que desalojaram todos os hóspedes para receberam a comitiva do Rei. Nicolaus abandonou a casa e pediu aos homens do palácio a necessidade de ser recebido pelo Rei dos quais não obteve resposta. Chegou depois um bobo da Rainha que se compadeceu com a sua pouca sorte e sem albergue o levou a uma Stallasum (possivelmente uma Estalagem, ou estábulo ou curral).
E continua o relato de Nicolaus: O Cozinheiro veio à noite ver-me; supliquei-lhe outra vez o favor de avisar S. M. de tudo o que me aconteceu e procurasse se lhe escolheria uma habitação. Prometeu-me fazer tudo, mas não voltou a responder-me... À noite levaram-me a um quarto onde dormi com os meus criados. À meia noite entraram no quarto umas mulheres alegres acompanhadas por ladrões que gritavam: Quem são estes ladrões que dormem no nosso quarto? Ali dormiram todos e jogaram com cartas a maior parte do tempo e durante uns dias.
No dia seguinte, pela manhã, pôs-se o meu criado a arranjar peixe, mas chegou uma velha bruxa que lhe retirou a caçarola do lume; mas o meu criado voltou a pôr ao lume. Então a velha besta, pegando numa grande concha de madeira, deu um golpe com ela no criado, que a concha se partiu em dois pedaços; com o pedaço que lhe ficou na mão deu-lhe na cara de forma que do seu focinho e do nariz lhe escorria sangue. Apesar de gritar para que terminassem, a velha ainda agarrou num pedaço de ferro e o agrediu e cortou como se fosse uma faca. Chegaram guardas e quem foi preso foi o criado de Nicolaus. Passados três dias tentou encontrar nobres que frequentassem a Corte para informar o sucedido, sem sucesso. Vai depois a um juiz que prometeu fazer justiça depois de comer. Procurou diretamente o Rei que lhe prometeu, também, recebê-lo depois de comer. Acabou por ser recebido e parecer que tudo iria melhorar.
Interessante são as notas do seu diário como esta: Em geral, a nobreza, os cidadãos e campesinos de Portugal parecem-se com os da Galiza, quer dizer: grosseiros, tontos, incapazes de bons costumes e ignorantes, e isto apesar de sua pretensão de serem os mais sábios; como os ingleses, que não admitem outro mundo igual aos deles. Os portugueses ... são mais fiéis do que os ingleses; não são tão cruéis e insensatos como estes; nas suas comidas e bebidas são mais moderados, mas mais feios de fisionomia... e continua o rol de comparações.
Faz depois grandes relatos sobre a história de Portugal e seu Rei, escrevendo que do Algarve chegam figos e uvas passas para Brabante e Flandres. Sobre a Madeira e Porto Santo refere a produção de muito açúcar, pão, vinho e frutas. Dos Açores, produzem um sem número de grãos e gado. Ainda da Ilha de Santiago (Cabo Verde) nos chega muito açúcar.
Sobre o encontro com D. João II escreveu: O Rei, como um senhor de alta inteligência, contenta-se com quatro ou cinco pratos na sua mesa; bebe unicamente água tirada do poço, sem açúcar nem especiarias, e fica sem outras coisas (possivelmente significando que não come sobremesa). O príncipe, seu filho, bebe vinho misturado com água. Curiosamente encontrei estes detalhes no livro “Largada das Naus” de António Borges Coelho, Editorial Caminho 2011. Nicolaus descreve também detalhes sobre o serviço de mesa.
Os relatos continuam sobre a descrição de Portugal e sobre reatos recentes sobre os duques de Viseu e Bragança. Decide ir ao Algarve, por via marítima, onde se cultivam grandes uvas tintas que se exportam para Flandres e outros locais. Foi depois a Tavira tendo observados muitas figueiras e oliveiras...
Em itálico, transcrição direta de tradução livre a partir de obra em castelhano.
Não encontrei esta obra publicada em português. Os relatos detalhados das suas aventuras merecem uma leitura atenta.
© Virgílio Nogueiro Gomes