Cozido à Portuguesa

Parece estranho editar esta crónica em pleno verão durante o qual deveria abundar o calor. Curiosamente hoje, quando pus o nariz fora de casa, senti um fresquinho a apetecer-me comida de inverno. Lembrei-me de imediato de um cozido à portuguesa programado pelo chefe Nuno Diniz, cujo trabalho muito admiro, e que foi servido durante o recente Congresso dos Profissionais de Cozinha. Parecia o maior expositório de enchidos portugueses a que já assisti. Foi no início de julho e todos comemos com vontade sendo impossível degustar a totalidade de produtos carnívoros que ultrapassou os oitenta! Deixo-vos algumas fotos desse deslumbramento.

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Um prato de cozido

Será que existe um “Cozido à Portuguesa”? Claro que sim. E o conjunto dos vários cozidos regionais constituem uma viagem ao país, no qual, onde em cada região se apresenta com os seus produtos ou tradições locais. E esse conjunto de cozidos é o património nacional e identificador do nosso patriótico «cozido».

Sejamos objetivos. Eu tenho muito orgulho na herança dos fenícios, romanos e dos mouros que estiveram no território que agora é Portugal. E trata-se primeiro de uma constatação histórica. Certo que temos alguns episódios na nossa História que nos levam a emoções contra nuestros hermanos. Mas passado isso, e estórias mal contadas, tenho que reconhecer que o “cozido” foi herdado a partir de Castela. Há autores, como Jose Esteban, que consideram o “cozido” como um dos quatro pilares da cozinha espanhola! Pois bem, o nosso “cozido” hoje é diferente do espanhol, ou dos vários espanhóis. Mas na Europa de hoje encontramos algumas preparações culinárias que pertencem a este grupo. Desde a França com o “Pot-au-Feu”, Itália com o “Bollisto Misto”, na Bélgica o “Hochepot” ou na Holanda o “Hotspot”.

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Variedade de enchidos

O cozido deverá ter sido consequência da criação do objeto culinária que permitia ter um líquido onde se coziam alimentos. E terá sido pelas variadas experimentações acidentais, acrescentando mais um produto, que nasceu o “cozido” qua agora conhecemos. Possivelmente, no período medieval, essa consistência deu força à criação ou simples redação da sua receita e, pela inclusão de variados enchidos cujo sabor dos temperos deu outra “alma” ao cozido.

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Algumas das carnes

A primeira receita escrita do cozido em Portugal é publicada na Arte de Cozinha de Domingos Rodrigues, 1680, e que tem a designação castelhana de “Olla Podrida”. De acordo com a cozinha que se inscreve naquele livro, cozinha palaciana ou de mesas abastadas, também este cozido é para gente de boas e grandes comezainas. Vejamos só os ingredientes: carne de vaca muito gorda, galinha, adem (ave palmípede da família do pato), perdiz ou pombo, coelho, lebre, orelheira ou pá, pernil de porco, chouriços, linguiça, lombo de porco, nabos ou rábanos, alhos grandes, grãos, castanhas, ramo de cheiros e pão. Longe vai o tempo deste cozido! Sabemos que a maioria da população não tinha uma alimentação como a representada nos livros daquela época. Haveria cozidos em fórmulas mais simplificadas ou com os ingredientes disponíveis em cada lar. Haveria sim sopas completas que representavam uma refeição e que muitas vezes seriam chamadas de Sopas de Carne onde coziam os ossos com os pedacinhos de carne que se tinham ficado agarrados.

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Mais enchidos

Gostaria muito de fazer um roteiro com os “cozidos” base que se fazem em cada região. Tarefa longa e que talvez justifique um livro só a esse tema dedicado. Tentarei identificar os que me parecem principais e algumas variantes. E começo pelo Minho. Habitualmente o cozido minhoto tem galinha, presunto, carne de vaca, salpicão, orelheira ou focinho fumados, couve tronchuda, cenoura, batata e arroz com miúdos de frango com presunto. Também é fácil encontrar cozido minhoto com toucinho entremeado fresco, entrecosto salgado e couve coração de boi. Ao lado, em Trás-os-Montes, o cozido leva sempre galinha ou frango, salpicão, chouriça de carne, chouriço de sangue, costelas ou entrecosto, ossos da suã (espinhaço), orelheira e focinho, couve lombarda, couve portuguesa, cenouras, nabos, batatas, rabas e arroz branco. No entanto nesta região, mais para o Barroso, o seu cozido também pode levar pernil de porco, pés de porco de meia cura, entremeada, rabos de porco e repolho. Mia a Sul e na zona maronesa os milhos são presença obrigatória e identificadora. Se voltarmos a subir, e no Nordeste poderemos encontrar um cozido que também leve butelo ou um cozido em que a carne principal seja o próprio butelo, língua fumada, costelas fumadas e as cascas que estão a entrar novamente nos hábitos alimentares. Se viajarmos pelas Beiras, os seus cozidos terão que ter chouriça, morcela, farinheira, presunto, chispe, orelheira, entrecosto, carne de vaca, feijão vermelho, nabos cenouras e batatas. Estas listagens não são redutoras nem definitivas.

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Mais enchidos

Há uma partilha de produtos que permitem sempre melhor enriquecer o cozido. Mas a nossa viagem e vamos até à Estremadura onde o cozido nos apresenta outras variantes. Na confeção entram carne de vaca, chispe, orelheira, chouriço de sangue, chouriço de carne, toucinho entremeado, morcela, couve portuguesa e couve lombarda, nabos, cenouras, batatas, feijão branco, hortelã e arroz branco. Chegamos ao Alentejo, o cozido apresenta mais novidades e também se diferencia nas suas sub-regiões. Basicamente o cozido é à base de grão-de-bico, feijão-verde vagem, batata, abóbora-menina, carne de borrego, toucinho, chouriço de carne, farinheira e hortelã. Para os lados de Évora ainda se junta orelheira, rabo de porco e nabos. Mais para as zonas fronteiriças há mais carne de porco, faceira, salpicão, entrecosto e carne de vaca. Ainda em Portugal continental, no Algarve o cozido também é de grão-de-bico, toucinho, carne de carneiro, chouriço de carne, feijão-verde, abóbora mogango, batata, hortelã e arroz. Muitas vezes a carne de carneiro é substituída por carne de vaca. Vamos agora até às ilhas e na Madeira faz-se um cozido a que também chamam “Panelo” e que contem carne de porco magra, batatas-doces, batatas comuns, nabos, couve coração-de-boi, cenouras, abóbora verde, cuscuz e tomilho. Nos Açores, e particularmente na Ilha de S. Miguel, em Furnas, o cozido é uma atração por cozer o conjunto dentro de uma panela que se mergulha em cova cavada em zona vulcânica. O cozido carne de vaca (chambão), carne de porco, frango, toucinho fumado, toucinho gordo e morcela. Os mais sensíveis, a cheiros, deverão evitar sentir o cheiro que fica comum a todos os ingredientes, semelhante a enxofre, e que faz as delícias de muitos.

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Alguns dos pães

Listar os ingredientes não chega. A forma como são juntos em cozedura os alimentos vai variando. Como o arroz que muitas vezes é feito com a água de cozer as carnes. Muitas vezes cozem-se os enchidos com os legumes e só no final se junta tudo. Em minha casa havia um tacho grande, grandão, destinado a fazer, exclusivamente cozidos. E os produtos entravam em tempos diferidos no tacho conforme a necessidade de cozedura de cada um. Acredito que no século XVII, ainda sem batatas e por isso aparece a castanha, os produtos coziam lentamente em fogo baixo durante várias horas. Hoje em dia há restaurantes que cozem separadamente algumas carnes mas as couves são sempre cozidas com os enchidos para ganharem novo sabor. Depois os restaurantes deixaram de apresentar o cozido em panelas ou travessas grandes, com tudo misturado e começaram a fazer bufetes que muito agradam à clientela pois cada cliente pode fazer o seu prato conforme o seu gosto e repetir o que mais gostar. Também já encontrei bufetes que dispõem da água (caldo) de cozer as carnes para poder regar o seu conjunto. Também já assisti a um serviço, espécie de “rodízio” em que cada empregado transporta um produto ou dois semelhantes e vão servindo conforme solicitação do cliente. Eu prefiro o bufete tradicional que disponha do caldo de cozer as carnes. E, a propósito, há alguns restaurantes que fazem a “Sopa do Cozido” que não passa de ser o caldo do cozido que ferve com massinhas e na final se junta hortelã.

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Outras carnes

Mas o que caracteriza o nosso “cozido”, e o que o diferencia do “Cocido Castellano”? Pois agora temos Portugal com dois tipos de cozidos, com grão-de-bico e sem grão-de-bico. Aqui uma semelhança com o “Castellano”. Depois os cozidos com arroz e sem arroz. Depois os cozidos com galinha e sem galinha. Ainda os que são à base de carne de porco e outros sem carne de porco a não os enchidos.

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As obrigatórias couves

Durante o inverno, de outubro a abril, é ver a satisfação de clientes em restaurantes cheios nos dias em que o prato do dia é «cozido». Claro que o cozido evoluiu, e continua nas tradições dos portugueses. E é ver o José Avillez a fazer trouxas, empadas e terrinas de Cozido à Portuguesa.

Fundamental um bom vinho tinto para acompanhar o cozido.

© Virgílio Nogueiro Gomes

Parte do texto incluído no livro Tratado do Petisco