(Arroz doce com gemas)

É para mim o doce que mais consideraria no grupo de alimento de conforto, categoria que já ganhou designação internacional de “Comfort Food”. Os doces populares criaram raízes, evoluíram, e ficaram irremediavelmente associados a tradições. Não há festa ou romaria, ou casamento, sem um arroz doce. E também se fazia arroz doce nos conventos, parecendo-me que não deva ser integrado no grupo de doçaria conventual.

Parece fácil entender que o arroz doce vem possivelmente dos mouros que habitaram o território antes da independência portuguesa. Aliás ainda hoje encontramos em todo o Magrebe receitas algo semelhantes às nossas. Eles por vezes servem em copos como sendo um creme ou ainda, em travessa, quase igual ao nosso.

Ingredientes simples e fáceis de identificar criaram uma variedade de receitas que permitem estabelecer um percurso por todo Portugal e entender as variantes da vasta gama de arroz doce. E comecemos pelo produto fundamental, o arroz, que tem que ser carolino. Depois vem o leite, o açúcar, a canela, os ovos, a casca de laranja ou limão. Há ainda um produto que infelizmente pouco se usa, a água de flor de laranjeira, ou a água de rosas que tantos doces temperaram até ao século XVIII. A variedade do inventário das receitas de arroz doce, é consequência da utilização de alguns daqueles ingredientes, e pela proporção diferenciada na confeção. Há genericamente dois grupos de arroz doce: com ovo, e sem ovo.

(Arroz doce com gemas)

O arroz doce sempre foi presença obrigatória em festas, romarias e particularmente em festas de casamento. Parece que nos terá sido chegado através da Pérsia. Mas é na Índia e na Indonésia que encontramos a maior variedade, e qualidade. No Oriente o arroz sempre simbolizou a fertilidade e, talvez por isso, o arroz é utilizado em chuva simbólica no final das cerimónias de casamento, tradição globalizada.

É do século XVI, com registos em receitas, que encontramos a particularidade de, com farinha de arroz, confecionar os doces mais delicados. É o arroz doce que dá origem a uma das primeiras receitas conhecidas noutros países com a designação “à portuguesa”, com a publicação em Madrid, 1611, de a Arte de Cocina de Francisco Martinez Moutiño, e mais tarde na Toscana, no manuscrito Il Panunto Tosacano de Francesco Gaudencio (1648-1733).

Encontramos algumas receitas em conventos, muito embora seja um doce que não deverá ser considerado conventual. A característica identificadora será a quantidade de açúcar que é a mesma quantidade de arroz, ou superior. Vejamos que a receita do Convento de Arouca apresenta o detalhe de ser o único que não utiliza gemas, mas regista a utilização de água de flor de laranjeira. Do Convento de Santa Clara de Guimarães, chega-nos a receita na qual coze o arroz em água e depois junta-se o leite, as gemas de ovo e casca de limão. Em Elvas, no Convento de S. Domingos, o arroz coze diretamente em leite, leva gemas e casca de limão. A receita do Convento da Senhora da Conceição de Lagos prevê a cozedura do arroz em água e depois adiciona o leite, as gemas e casca de limão. Nos Açores, no Convento de S. João de Ponta Delgada o arroz também coze em água, e depois juntam-se as gemas e possui a característica de ser o único confecionado com casca de laranja. Temos ainda notícias da confeção de arroz doce no Convento de Sant’ Ana de Coimbra sendo desconhecida a sua receita. Há um detalhe importante do acabamento em todas as receitas que é o polvilhar, ou enfeitar, com canela em pó. Surgem com frequência verdadeiras artistas do desenho com canela!

(Arroz doce sem gemas)

Vejamos agora o arroz doce de origem popular e para o qual poderemos fazer um roteiro do arroz doce nacional e que, em muitos casos, não é seguramente inferior em riqueza de gosto em relação aos conventuais. Encontrei no Minho, e cerca de Viana do Castelo, um arroz doce macio, cozido em leite, e que é melhorado pela utilização de açúcar em pó, e algumas gemas de ovo. Continuando no Minho, faz-se um arroz doce que coze primeiro em água e só depois se junta o leite, após evaporação da água, mas ao qual não se juntam gemas, ficando menos cremoso. Na região vizinha de Trás-os-Montes, espero não me alongar com as minhas tradicionais transmontanices, encontramos a confeção de arroz doce conhecido um por mais simples, sem gemas de ovo, e mais quantidade de arroz do que de açúcar, e outro de festas especiais, em Freixo de Espada à Cinta, confecionado com leite, com bastante açúcar, gemas e por vezes aromatizado com água de flor de laranjeira. Também se fazia em minha casa com leite gordo, mais açúcar que arroz, e variava a quantidades de gemas conforme a ocasião. Na Beira Alta a tradição é fazer o arroz doce sem ovo. Podem variar as proporções de arroz e açúcar, mas muito raramente confecionados com gemas. Uma raridade é um arroz doce de Vila de Rua, freguesia de Moimenta da Beira, que é o Arroz Doce de Cesto. A particularidade é a colocação do arroz, depois de confecionado e ligeiramente arrefecido, num cesto de verga previamente forrado com uma alva toalha de linho. O arroz não é lavado, e é submetido a uma pré-cozedura em água, à qual se junta depois o leite. Quando estiver cozido juntam-se as gemas que se misturaram com o açúcar. Este procedimento transmite uma textura diferente ao creme. Claro que para finalizar se enfeita com desenhos feitos com canela em pó. Possivelmente de Coimbra nos vem uma tradição invulgar associada ao arroz doce, e que parecer estar a ficar em desuso. A família da noiva participava o casamento às famílias amigas, oferecendo uma travessa de arroz doce coberta por toalha de tecido de Almalaguês, de produção artesanal. Passados uns dias, a travessa era devolvida com o presente de casamento. Aqui o arroz é bem lavado, abrindo primeiro em água, e depois é colocado em leite fervente, ao qual se adiciona açúcar em maior quantidade do que a do arroz, e muitas vezes com casca de um limão. Não se adicionam gemas de ovo. O arroz doce, representava assim, uma forma de convite. Consta que nas Beiras interiores se faz um arroz doce sem gemas, que se deixa em travessa de um dia para o outro e que tem a particularidade de se poder cortar com uma faca, contrariamente a todos os outros que se servem à colher. Continuando a nossa viagem até à Estremadura, encontramos um arroz doce “saloio” cuja quantidade de açúcar é ligeiramente inferior à de arroz, mas sempre com gemas de ovos. Ainda nesta região encontramos o chamado arroz doce de casamentos que é um arroz mais rico pela grande quantidade de açúcar e de gemas de ovo. Na região de Palmela é feito um arroz doce com leite de ovelha que lhe dá um sabor diferente mas inesquecível. Para terminar encontramos no Alentejo ainda outra forma de arroz doce que tem a particularidade de ser confecionado sem gemas, mas adiciona-se um pouco de banha de porco que dá uma consistência muito cremosa ao doce.

(Arroz doce sem gemas sendo decorado com canela)

Já comi arroz doce ao qual eram adicionados frutos secos picados ou frutas cristalizadas também picadas. Quando utilizado este complemento em doses moderadas dá um toque e sabor diferente. Também já me serviram arroz doce, acabado de fazer, e ainda morno, ao qual eram juntas no tacho claras batidas em castelo. Fica um creme leve mas tem o risco de não se dever guardar de um dia para o outro. Antigamente havia casas onde se confecionava arroz doce cada dois dias pois era a chamada sobremesa de resistência, nunca se ficando no final da refeição com boca de pobre.

As receitas de doçarias, como as de cozinha são alvo de evolução, um processo natural e dinâmico. Importante é que não se crie roturas que descaracterizem essas receitas. A nova cozinha tem dado alguma importância à nossa doçaria e lembro-me bem da excelente composição do Chefe Aimé Barroyer com o arroz doce e um gelado de canela. O arroz doce foi espalhado pelo mudo, pelos portugueses. E hoje encontramos ainda em todos os territórios onde se fala português, bom arroz doce. Infelizmente, no Brasil, também é uma receita atacada pela utilização indiscriminada de leite condensado que lhe dá um gosto igual a todos os doces, e com uma textura também diferente. Salve-se pela utilização da canela!

Não esqueçam os excelentes generosos portugueses para acompanhar o arroz doce.

© Virgílio Nogueiro Gomes