Ainda no período quaresmal, durante o qual os católicos deveriam jejuar ou pelo menos absterem-se de comer carne às sextas-feiras, uma boa sugestão para cumprimento desses deveres. O propósito de jejuar, ou de deixar de comer carne, simbolizaria o afastamento de prazeres da mesa, não cometendo o pecado da gula. Ora, estes delicados petiscos, por abstinência que possam parecer, constituem para os seus apreciadores um verdadeiro pitéu dos céus! Não são pratos de regularidade nos restaurantes, mas os que gostas são consumidores assíduos e prazenteiros. Vejam como o mundo é complicado. O que para uns é um sacrifício e um cumprimento de regras associadas às suas convicções religiosas, para outros é uma satisfação de prazer que se traduz em pecado.
Tanto as línguas como as caras de bacalhau não se vendem em todos os locais onde se vende bacalhau. Há casas comerciais que especificamente os vendem. No Brasil nunca encontram estas partes, que não sendo nobres, têm um jeito de nobreza na cozinha. Desde pequeno, educado felizmente na província, que me habituei à sua presença. Não havia estas partes à venda. Vinham do Porto, em barricas ou caixas, línguas e caras de bacalhau acondicionadas com sal grosso. Numa mesa de família há sempre alguns que torcem o nariz, ou por ter que espinçar os ossos ou não gostar da matéria gelatinosa que contém estes produtos. As línguas ou simplesmente se coziam, se fritavam ou panavam, e ainda se faziam de fricassé. Quanto às caras de bacalhau apenas se coziam e acompanhavam com grão-de-bico, batatas ou grelos. Muitas vezes também se serviam “com todos”, a exemplo do gadídeo completo. Estas partes do bacalhau têm um grupo de apreciadores fiéis. Possivelmente deveriam, também, associar-se à divulgação destes produtos e a forma de os apreciar. O bacalhau, que durante tantos anos foi um dos produtos de acesso fácil, por isso a sua popularidade, continua a fazer sucesso e é, muitas vezes, o principal indicador de cozinha portuguesa pelo mundo. É seguramente o principal elemento de saudade da nossa cozinha junto do portugueses espalhados por tantos países estrangeiros.
Pois a semana passada fui convidado para participar num painel para escolha do melhor vinho português para acompanhar “Arroz de Línguas de Bacalhau” e “Caras de Bacalhau com Grão”. A tarefa não era fácil pois tínhamos doze vinhos para cada prato. O arroz apresentou-se cremoso e as línguas cozidas no ponto. Foi um arroz malandrinho feito com um refogado de tomate e utilizando arroz carolino. Quanto às caras de bacalhau eram cozidas e acompanhavam com grão e batatas. Como opção dispúnhamos de cebola, alho e salsa picada que cada um colocava a gosto no seu prato. Azeite também à disposição para colocação individual.
Estas provas decorrem integradas num projeto de Alexandra Maciel, Harmonias ComProvadas, que cuidadosamente vai organizando estas sessões de casar cozinha portuguesa com os nossos vinhos. Decorreram estas duas sessões no restaurante “A Casa do Bacalhau”, em Lisboa, que prestou um serviço cuidadoso e atento.
A primeira iniciativa do projeto decorreu com Pasteis de Nata e da qual dei notícia, e tem como objetivo final a publicação de um livro no qual constarão todas as provas.
Descubram as formas fáceis e variadas de comer bacalhau. Naturalmente saberão muito melhor se acompanhadas pelo vinho da sua eleição.
© Virgílio Nogueiro Gomes