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Na sequência da crónica anterior, termina hoje o texto que se iniciou com o ritual da matança do porco.

 

“… se transformarem em bom presunto.”

 

Entretanto logo após a desmancha o porco, as carnes magras e as sobras dos presuntos e espáduas, entravam, por categorias, em grandes alguidares de barro vidrado para serem temperadas, e cujo destino eram os enchidos (embutidos no Brasil) de carne.

No dia em que se retiravam as carnes da salgadeira, tarefa de homens, eram estes que as levavam para a cozinha e nesse dia, parecendo uma paga dos trabalhos, almoçava-se “lombelo” e “entrecosto” assados como petiscos sobre pão, e bem regados com vinho. Eram petiscos de honra.

Nova tarefa aguardava as mulheres: limpar as carnes da gordura que se juntara para fazer banha, cortar as carnes para as colocar de “adobo”, e preparar os rojões da “barbada”. Para o “adobo”utilizava-se água e vinho branco na mesma proporção, sal, alho, louro, pimentão-doce e pimentão picante. Todos os dias eram remexidos à mão.

Depois havia ainda o ritual de em cada dia preparar enchidos diferentes. No dia das alheiras e dos chouriços azedos e enchidos de pão, almoçava-se as carnes já cozidas para os enchidos, fazia-se uma sopa das alheiras com tiras de pão, e o caldo de cozer as carnes. Nos dias de enchidos de carnes almoçava-se em petisqueira as carnes que se iam grelhando e se colocavam sobre pão de mistura. Num dos dias mais aliviados ou no dia de encher os “butelos”, comia-se o famoso “guisado de ossinhos”, ao qual se adicionava a mioleira batida com ovos. Fazíamos ainda um enchido especial confecionado com as línguas que tinham ficado de “adobo”, e que depois de curado era cozido e cortado às rodelas, passado por ovo e pão ralado e depois frito. Era o enchido de menor quantidades. Cada porco só tem uma língua…!

“O melhor tempo é quando faz geada, e está o tempo frio e seco. Eu conhecia o fumeiro pelo apalpar”, segundo a minha Mãe, e questionada sobre o tempo que seria necessário para o fumeiro ficar pronto, e acrescentava que o melhor combustível eram o carvalho e o carrasco, e nunca o pinheiro.

“Agora só se pode matar no matadouro, assim é que estará certo… mas desapareceu a festa que era o dia da matança.”

Queria especialmente lembrar que do porco aproveitamos tudo, e vos prometo para breve um livro sobre este assunto, e documentado com fotos.

A propósito, o famoso Chefe de Cozinha Anthony Bourdain, de origem francesa e estabelecido com sucesso nos Estados Unidos, decidiu dar a volta ao mundo “Em busca do Prato Perfeito”. Conhecendo uma família de emigrantes portugueses, e seus patrões, decidiu visitá-los e foi presenteado com uma matança de porco. E aproveitou para ficar a assistir à sequência de pratos e enchidos, até ao final.

Portugal preenche um capítulo do seu livro do qual me permito transcrever umas das frases finais: “Portugal foi o início, foi onde comecei a perceber o que está faltando na experiência alimentar do americano médio. Grandes grupos de pessoas, comendo juntas. O elemento familiar. A aparente crueldade de viver próximo ao que se come. A teimosa resistência a mudanças, se tais mudanças vierem às custas de pratos tradicionais apreciados.”

Pois é. Cada vez mais as novas gerações apenas conhecem o produto embalado ao qual verificam o prazo de validade, e que às vezes até perguntam se é light!

Ah! Faltava a referência à categoria do "porco bísaro". É uma exigência que se deve fazer quando se comem especialidades transmontana deste suíno.

E ainda que todas, desde os petiscos, aos enchidos e às confeções culinárias saberão melhor se foram acompanhadas por um bom vinho Douro DOC, ou um vinho Regional Transmontano. 

 

© Virgílio Nogueiro Gomes

 

Texto já publicado no meu livro “Transmontanices”, e também na revista BÔ, agora com nova revisão.