Chouriças de Sangue

(Chouriços de sangue, doces)

Possivelmente ainda se lembram da crónica anterior, do porco, que titulei como “Sua Excelência, o Porco”. Contei as passagens do porco até ser morto, chamuscado e limpo e recolocado no banco do seu assassinato. Continuemos então.

Transporta-se o porco ainda sobre o banco, para o local da casa onde vai ser pendurado. Ainda sobre o banco, e de pernas para o ar, dá-se-lhe um golpe longitudinal do meio para a cauda, e retira-se uma tira da barriga, a “barbada”, para fazer rijões e banha. Entretanto dão-se golpes, efetuados apenas por sabedores destes ofícios, para isolar as tripas e impedir que os seus mal cheirosos conteúdos se espalhem. Depois de bem acertadas as cordas e os nós de fixação, iça-se o porco para uma trave. A meio içar, dá-se outro corte na barriga e são recolhidas as tripas, tendo o cuidado de recolher primeiro a membrana que dá pelo nome de “rendinha”, que se coloca a secar nos pés do porco depois de completamente içado. As tarefas tinham uma distribuição organizada. O matador retirava as tripas, a mulher recolhia-as no cesto. De seguida ela retira-se para outro local para as desmanchar libertando-as da gordura que as liga umas às outras.

Depois de almoçar, os homens estão libertos. Muitos deles aproveitam para se deliciarem com uma sesta. As mulheres têm a tarefa desagradável, e penosa, mas delicada de limpar as tripas. Dizia minha Mãe: “Nunca gostei de lavar as tripas em casa. Geralmente ia-se para qualquer rio ou ribeira que ficasse perto.” A lavagem das tripas, em água fria corrente da ribeira, deixava as mulheres com as mãos “engaranhidas”. Mas era preciso serem habilidosas. Para que esta operação resultasse eficaz, usavam um pau que as auxiliava a virar as tripas, e daqui vem a expressão “pau de virar tripas”, que eram uns paus de vime, finos, escolhidos especialmente para “virar e escamar” as tripas. Agora raramente se vai ao rio lavar as tripas. Nem sempre corre a água com a velocidade pretendida, e há outra consciência sobre a poluição das águas. (O meu amigo António Bóia utiliza para primeira lavagem uma mangueira, de pressão, com que habitualmente rega o jardim ou a horta). Após estas operações pode considerar-se o porco limpo. Exceção é o “bucho” que só é considerado bem limpo, depois de “escaldado” com água muito quente. Terminada a função das tripas as mulheres bebiam uma bebida quente, muitas vezes vinho doce, ou chocolate para recuperar as forças. Depois acomodam-se as tripas num alguidar com rodelas de laranja e dentes de alho para que não deixem cheiros. Nos dias seguintes são passadas por água e renovam-se as rodelas de laranja e os dentes de alho.

Em minha casa nem sempre se aproveitava a bexiga. Esta servia, depois de bem cheia com água, para os mais novos, “que não faziam mais nada senão brincar”, correrem uns atrás dos outros para se borrifarem.

Mas os trabalhos do primeiro dia ainda não se esgotaram. Na noite da matança ainda se fazem os “chouriços de verde, doces”, sequência de umas sopas de mel com canela, amêndoas e o sangue do porco. Só depois destes chouriços pendurados podiam as mulheres ir descansar.

Na minha família, tanto materna como paterna, só se desmanchava o porco quarenta e oito horas depois da matança. O animal ficava em descanso e escorrimento por dois dias. Findo esse período, descia novamente à terra, para o mesmo banco.

O corte das carnes é trabalho de artista. Cortado em duas metades, separava-se a “soã” e o entrecosto. Separavam-se também as carnes magras que seguiam de imediato para a cozinha e para serem preparadas com os temperos especiais e que dariam os enchidos (embutidos no Brasil). Depois, retirava-se o presunto e a espádua e separando-se a parte de carne que os ligava. Para estas operações utilizavam-se facas, cutelos e machados. Os pés eram também cortados mas não se deixavam com os presuntos. De seguida, colocavam-se as carnes em “salgadeiras”, que eram umas caixas fundas, de madeira, com tampo de rede e com aberturas pequenas nos cantos inferiores para escorrer a água que se ia criando. Aí eram colocadas as carnes com abundância de sal grosso. A cabeça era cortada ao meio, retiradas as orelhas e o focinho. Estas tarefas eram habitualmente destinadas aos homens. As carnes em salmoura eram remexidas, garantido que a parte do couro ficasse para baixo, e substituído algum sal duas semanas depois. Decorridas duas semanas, os presuntos e as espáduas eram retirados e limpos de sal. À parte preparava-se uma mistura de azeite com colorau picante, e com ajuda de um pano, besuntavam-se bem as carnes que passavam para o fumeiro e depois de escorrerem para local seco a “amadurecerem” para se transformarem em bom presunto.

O final deste episódio de matança, e aproveitamento do porco, fica para próxima crónica.

Alheira

© Virgílio Nogueiro Gomes

Texto já publicado no meu livro “Transmontanices”, e também na revista BÔ, agora com nova revisão.