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Ainda estou no Brasil e o que originou esta crónica foi o facto de, poucos minutos depois de estar sentado à mesa para almoçar e sendo identificado como português, me vieram perguntar se aceitava um prato de tremoços. Surpreendido aceite e tentei explicar ao meu amigo Luciano Hortêncio, que comigo almoçava, a tradição do tremoço em Portugal. Nós tínhamos ido almoçar ao Marquês da Varjota, em Fortaleza, para comer bacalhau. E este é um dos meus locais preferidos para comer o emblema mais identificador de comer à portuguesa, o bacalhau. Fiquem, os apreciadores deste produto, a saber que aqui o podem consumir.

Depois de contar a prática de servir tremoços, sobretudo em cervejarias, e para acompanhar cerveja. Lembrei-me ainda de uma vez que fui à Índia para uma estada em Panjim, Goa, que o meu amigo Dr Jorge Fernandes me enviou uma mensagem com um pedido para lhe levar tremoços pois deles tinha saudades, e era produto que não encontrava na Índia. Depois lá contei a lenda começando com a pergunta habitual: sabe que os tremoços, se não levarem sal, não têm sabor? Qual a razão? E lá contei a história da fuga para o Egito da Sagrada Família para evitar a matança de Jesus depois da declaração de morte a todas as crianças pelo anúncio do nascimento do novo Rei dos Judeus. Na sua caminhada tiveram que atravessar tremoçais e como estes faziam tanto barulho, Deus terá amaldiçoado os tremoços tirando-lhes o seu sabor…! Sempre ouvi contar esta história como sendo uma lenda. E das lendas cada um tira a verdade que mais se lhe ajusta. Eu já fiz a experiência de comer tremoços sem sal. Que desconsolo. Eu que ando a fugir do sal não abdico dele nos tremoços. Mas interessante é caminhar num campo de tremoçais. De facto o barulho continuado dos tremoçais sente-se como um assobio, às vezes estridente, que só a natureza consegue produzir. Não é possível consumir os tremoços ao natural pois contém um aminoácido neurotóxico impeditivo para o consumo humano. Para poderem ser consumidos sem perigos para a alimentação, os tremoços deve ser cozidos em água e depois de arrefecidos, mudar a água fria durante vários dias até perderem o sabor amargo que os caracteriza, e portanto eliminados os alcaloides.

Para o nosso almoço, depois de um pãozinho quente, a lembrar Portugal, que aqui o pão é das saudades alimentares maiores, lá comemos o prato de tremoços e depois um correto Bacalhau à Brás. E chamo-lhe correto pois no estrangeiro não é evidente que os pratos correspondam à tradição ou origem do prato. Recentemente aconteceu-me pedir um Bacalhau à Zé do Pipo pois a amiga com quem partilhava o jantar falava com o empregado que o bacalhau que ela mais gostava era um que parecia uma “espécie de suspiro”, assim com aquela “cobertura alta”… O empregado confirmava que era o Bacalhau à Zé do Pipo e eu, como gosto de experimentar tudo, lá aceitei. Como o serviço demorava muito questionei o empregado, garçon, sobre a demora e ele explicou-me que este prato demorava quarenta a cinquenta minutos pois era feito na hora e terminado no formo. Espanto meu, passados minutos chega um recipiente, barcaça, de porcelana e que apenas se via a parte superior que era o tal “suspiro” ligeiramente torrado nas pontas o que confirmava a sua passagem pelo forno. O que nos foi servido foi uma espécie de Zé do Pipo no qual foi substituída a maionese por claras batidas em castelo e que realmente enfeitavam o prato mais do que acrescentavam valor à tradição. Não é a primeira vez que insurjo contra a alteração de uma receita quando esta já está bem implantada. Se não gostam da maionese chamem ao prato “inspiração ao Zé do Pipo”. Coitado do Zé do Pipo, nome que davam ao proprietário de uma casa de pasto no Porto, e que nos legou esta excelente receita. Chamem-lhe variação, chamem-lhe…

Não está em causa a qualidade do que se comeu. Mas não é aquele o nome do prato.

E não esqueçam que o bacalhau sabe melhor se acompanhado por um bom vinho.

© Virgílio Nogueiro Gomes

Nota - O restaurante do Hotel Real Villa Italia, em Cascais, serve tremoços incluídos no couvert

Março 2011