Com esta crónica apresento o quinto texto consecutivo sobre sopas, e por agora vou parar. Mas tenho que explicar primeiro o que vou apelidar ou enquadrar no grupo de sopas doces. Já escrevi várias vezes que o termo sopa tem muito a ver com a utilização do pão. Um caldo transformava-se em sopa quando se lhe adicionava pão. Depois as minhas memórias do que chamávamos sopas doces no inverno, nos dias que antecediam e seguinte do enchimento das alheiras (quando ainda não se imaginava que também lamentavelmente as fazem de bacalhau), se faziam umas sopas doces com o pão, a calda, o mel, as amêndoas e a canela. Irei pois considerar para além das receitas que ostenta o título de sopas, os pudins com pão e outras sobremesas doces com pão, e que todas se comem com colher. Sim porque ainda não se perdeu a expressão: “Caído como sopa no mel”. Final feliz, o pão sobre o mel ou o mel que acompanha o pão. Do mel tenho ainda a lembrança de adoçar o leite quente em dias de constipação, ou adoçar o chá para o mesmo efeito, e especialmente o xarope que se fazia com cenouras cortadas às rodelas e depois cobertas com mel. Aguardavam de um dia para o outro, e o xarope conseguido eliminava a tosse e a rouquidão. Depois até comíamos as rodelas de cenoura, docinhas… O mel foi desde sempre um alimento superior, alimentação de deuses, ajudante fármaco, componente para tratamentos de pele e de beleza. Sobre estas recordações de infância apetece-me citar Michael Pollan que, no seu recente livro “Regras da Comida”, no segundo conselho, sugere que “Não se coma nada que sua avó não reconheceria como comida”. (Eu que não tive a sorte de conhecer as minhas Avós mas recebi boas heranças da Mãe e das Tias). Isto depois de logo no primeiro afirmar “Coma comida”. Claro que todo o livro é um manifesto contra o aumento de produtos alimentares cheios de compostos que desconhecemos. É a apologia do consumo de produtos diretos e dos quais conhecemos a origem.
Neste deambular à procura de “sopas” (sim, este é o vocábulo que vou usar para as especialidades a apresentar) doces, reparei que a grande maioria do receituário se situa a norte do rio Tejo.
Verdadeiramente com a designação de “Sopa Doce”, encontramos no Minho uma receita que é feita com pão demolhado e depois ensopado com vinho verde tinto que ferveu com açúcar e pau de canela. Depois de obter uma massa uniforme serve-se em pratos e deixa-se arrefecer. Depois de fria, e ao servir, polvilha-se com canela. Segundo a tradição esta sopa serve-se no período natalício e consta-me que está em desuso. Mas a glória destas sopas são as “Sopas Douradas” que eu conheço em duas versões que poderia chamar uma de rica e outra de popular. A grande diferença está na base que no primeiro caso se usa pão-de-ló e no segundo se usa pão comum, muitas vezes frito. Voltando às ricas, começa por ter um ponto de açúcar baixo, e aromatizado com flor de laranjeira (já vi confecionar também com água de rosas), no qual se molham fatias de pão-de-ló que depois vão a escorrer sobre uma grelha fina. O açúcar volta ao lume e junta-se amêndoa picada e depois, fora do lume, juntam-se gemas de ovos até obter uma massa grossa. Numa travessa colocam-se as fatias de pão-de-ló que se cobrem com o creme das gemas. Depois enfeita-se com frutas cristalizadas. Outra versão de “Sopa Dourada”, é feita também com pedacinhos de pão-de-ló que se colocam numa taça. Depois salpicam-se com Vinho do Porto, polvilham-se com canela e amêndoa picada. Cobre-se com ovos-moles e enfeita-se com missangas prateadas. Ainda sobre sopas douradas a partir de pão-de-ló temos outra versão com fatias grossas molhadas em ponto de açúcar baixo (de cabelo), depois são cobertas com ovos-moles e polvilha-se com canela. Dentro da mesma categoria encontramos na zona de Coimbra uma Sopa Dourada do Convento de Santa Clara. Partindo também de pão-de-ló, que é ensopado em ponto de açúcar baixo (pérola), e aromatizado com água de flor de laranjeira. Depois, à calda do açúcar, junta-se cidrão cristalizado, doce de chila e amêndoas peladas e deixa-se ferver um pouco. A esta calda de açúcar junta-se a frio gemas que se envolvem e volta ao lume até engrossarem. As fatias de pão-de-ló (já escorridas) são colocadas em travessa e cobertas com este creme de ovos e termina-se polvilhando com canela. Já vi apresentada esta receita em taça alta e com duas camadas de pão-de-ló e creme de ovo. A versão chamada pobre em vez de pão-de-ló usa-se pão cortado às fatias finas, ou aos cubinhos, que se ensopam em açúcar em ponto baixo. Por vezes fritam-se os cubinhos de pão em azeite e só depois se ensopam no açúcar. Depois colocam-se frutos secos ou cristalizados, e cobre-se com doce de ovos ou ovos-moles, não faltando também a canela.
A maior curiosidade são as Sopas Secas Doces de tradição na região próxima do Porto. Faz-se um caldo de carne com galinha, toucinho e carne de vaca sem gordura. Noutros locais pode levar também salpicão, e presunto em vez de toucinho. Depois do caldo feito, coa-se e junta-se hortelã, mel, açúcar e canela garantindo que fica bem doce. Há sítios que jantam também casca de limão. À parte cortam-se fatias de pão que são molhadas com o nosso caldo de carnes doce. Depois, em terrina ou alguidar de ir ao forno, polvilha-se com açúcar e canela e vão-se colocando as fatias de pão ensopadas em camadas sempre polvilhadas com açúcar e canela. Na última camada pode regar-se com mais um pouco de caldo e agora polvilha-se só com açúcar. Leva-se ao forno coberto com papel e serve-se no próprio recipiente que foi ao forno. Sobremesa de casamentos, e da época das vindimas do Douro, muitas vezes o recipiente é envolto em tolha de linho. Quanto às carnes, dá-se aproveitamento para outras receitas.
Tradição comum ao Minho e a Trás-os-Montes são os “Sarrabulhos Doces”, naturalmente confecionados após a matança do porco. O sarrabulho minhoto é feito com fritura de pão, aos cubinhos, em gordura de redenho, à qual se junta depois o sangue de porco cozido, o mel, as nozes e as passas, o pão frito e para finalizar um copo de Vinho do Porto. Serve-se bem quente em taças de sobremesa e até em pratos de sopa. A diferença para o sarrabulho transmontano é que neste, começa-se por levar açúcar com água ao lume até ponto de espadana. Depois junta-se amêndoa, pelada e partida, e o sangue de porco já cozido e esfarelado. Serve-se bem quente como sobremesa. Idêntica a receita de Sangue Doce de Valpaços que tem os mesmos ingredientes mas que fica mais doce atendendo à quantidade de açúcar utilizado.
Temos ainda os Mexidos Doces nos quais são produtos fundamentais: o pão e o açúcar. Vamos encontrar Mexidos no Minho e no Alto Douro, e ainda sob a forma de Formigos na Beira Litoral. Claro que em ambos os casos, para além do açúcar (ou mel) e do pão já referido, também são utilizados ovos, frutos secos ou e frutas cristalizadas, Vinho do Porto e canela.
Mas eu queria chegar aos enchidos doces como as Morcelas Doces de Trás-os-Montes e da Beira Alta. As mais famosas são as de Tarouca, de origem conventual. E porque quereria eu chegar às Morcelas quando me proponho escrever sobre Sopas Doces? Pelas memórias associadas à matança de porco. Em minha casa faziam-se as “chouriças doces” (Morcelas) quase em simultâneo com as alheiras. Com o mesmo pão, com o mesmo caldo, acrescentando mel e canela e tínhamos a lambarice desejada. Curiosamente pedíamos por vezes para nos repetirem a receita mas nunca era tão boa como quando se faziam os enchidos. E o segredo estava no caldo de cozer as carnes para as alheiras. Estas sopas eram-nos feitas em tigelas (malgas) individuais. Uma camada de pão, uma colher de mel, um polvilho de canela. E repetia-se a operação até que a tigela estivesse quase cheia. Depois vinha o caldo e novamente o mel. Nós divertíamo-nos, com a ajuda de uma colher, a misturar bem e a comer. E a lamber…
Estas sobremesas sabem melhor se acompanhadas por um vinho a preceito. Pode ser um generoso, ou um de colheita tardia.
BOM APETITE!
© Virgílio Nogueiro Gomes
Foto de © Adriana Freire
DEZ2010